Renato Lima Charnaux Sertã
Juiz Titular da 8ª Vara de Fazenda Pública
do Rio de Janeiro-RJ
Professor de Direito
Civil na PUC-RIO e na EMERJ
Introdução:
Neste alvorecer do
terceiro milênio, a população mundial assiste – por vezes atônita – ao
desenrolar de acontecimentos alarmantes que parecem ter se precipitado na
última década. Crescimento da violência, guerras com uso de armas cada vez mais
letais, intensificação da desigualdade social e econômica, surgimento de
doenças até então desconhecidas, explosão populacional, poluição, mudanças
climáticas, esgotamento de reservas naturais.
Nas rodas de conversa, o
fantasma do aquecimento global – ameaça que já se tornou fato concreto – parece
agora dividir as atenções com as demais mazelas da humanidade que, embora
tardiamente, volta-se para a perseguição de um ideal que até então parecia de
pouco relevo: desenvolver a economia sem esgotar os recursos e riquezas do
planeta; em outras palavras, o (agora) tão decantado “desenvolvimento
sustentável”.
A sociedade hodierna em
geral, e a brasileira em particular, vem sendo testemunhas dessas transformações,
tão profundas quanto céleres. E como é natural, na busca de soluções nasce uma
infinidade de conflitos de interesse. Enquanto uns querem aumentar a produção a
qualquer custo para atender à crescente demanda de alimentos e bens, outros
sustentam que tal desiderato não pode significar a degradação do meio ambiente para
as gerações presentes e futuras.
Ao Poder Público resta
engendrar resposta adequada à solução de tais conflitos, seja pela edição de
leis, marcos regulatórios e outros instrumentos normativos, seja pelo
pronunciamento do Poder Judiciário em casos concretos.
A problemática do lixo:
Conseqüência direta da
sanha desenvolvimentista, o lixo, conhecido tecnicamente como “resíduo sólido”,
vem ocupando cada vez mais o cenário atual. Antes esquecido, agora é lembrado a
todo instante, pois cada vez fica mais difícil escondê-lo.
Nada obstante, e como
centelha de alento, vale lembrar que de todos os aspectos ligados ao
desenvolvimento, o destino do resíduo sólido parece ser aquele sobre o qual a
sociedade pode interferir mais decisivamente. Em outras palavras, a solução há
de depender não somente das autoridades governamentais, mas de toda a
população.
Com efeito, se o cidadão
comum sente-se incapaz de evitar que as fábricas poluam a atmosfera, que as
indústrias emitam gases de “efeito estufa”, que os laboratórios inventem
substâncias artificiais que venham a prejudicar o equilíbrio da Natureza, essa
sensação de impotência já não ocorre com tanta intensidade no que se refere aos
resíduos sólidos.
É que o cidadão pode – e
deve – através de reflexão diária, mudar de atitude em relação ao material que
descarta, pensando sobre sua origem, importância e destino final.
Ao mesmo tempo, pode – e
também deve – cobrar das autoridades uma fiscalização mais efetiva sobre o
manejo de tais resíduos, nos mais variados níveis.
Os conflitos que daí
decorrem são cada vez mais freqüentemente trazidos ao exame do Poder
Judiciário, exigindo pronta solução, não somente para as partes envolvidas, mas
sobretudo em direção à coletividade.
Previsão legal e suas
peculiaridades:
Já contamos hoje com regra específica sobre o tema, a Lei
Federal 12.305, de 2 de agosto de 2010, que institui a Política Nacional de
Resíduos Sólidos, e introduziu
importantes modificações no cenário até então vigente.
Entre elas, pode-se
destacar a noção de responsabilidade conjunta dos mais variados setores da
sociedade pela produção e destino do lixo. Preconiza a lei que todos,
produtores, comerciantes, fornecedores e
consumidores, devem se dispor a tratar do problema. Confira-se o parágrafo 1º
do seu artigo 1º :
“Parágrafo 1º - Estão sujeitos à
observância desta Lei as pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou
privado, responsáveis, direta ou indiretamente, pela geração de resíduos
sólidos e as que desenvolvam ações relacionadas à gestão integrada ou ao gerenciamento
de resíduos sólidos.”
Nesse ponto, é de se
observar que os cidadãos deixam de ser meros expectadores, para alcançar o
patamar de colaboradores e agentes de cobrança de soluções. O indivíduo
continua merecendo proteção estatal (situação bastante presente, por exemplo,
no contexto do Código de Proteção e Defesa do Consumidor – Lei 8078/90), porém
passa a ser também responsabilizado pela intervenção direta no enfrentamento do
problema, mormente no que concerne ao manejo dos resíduos sólidos: sinal de
maturidade da sociedade democrática, que convoca o cidadão à constante participação.
Ao mesmo tempo, os
detentores dos modos de produção industrial são explicitamente concitados a se
responsabilizar pelas conseqüências da colocação de seus produtos no mercado,
especialmente quanto ao que ocorre após o consumo.
Tal é a função do novel
instituto da “logística reversa”, segundo o qual os resíduos do consumo (v.g.,
embalagens vazias, baterias usadas), conquanto pertençam ao consumidor, devem ser
recolhidos às expensas do fornecedor, posto que este, e não aquele, dispõe de
meios adequados à retirada de tais resíduos de circulação, de modo a livrar a
comunidade das nefastas conseqüências de seu acúmulo. Nesse diapasão, determina
o artigo 33 da Lei 12.305/10:
“Art. 33 – São obrigados a
estruturar e implementar sistemas de logística reversa, mediante retorno dos
produtos após o uso pelo consumidor, de forma independente do serviço público
de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, os fabricantes,
importadores, distribuidores e comerciantes de:
I – agrotóxicos, seus resíduos,
embalagens, assim com produtos cuja embalagem, após o uso, constitua resíduo perigoso,
observadas as regras de gerenciamento de resíduos perigosos previstas em lei ou regulamento, em normas
estabelecidas pelos órgãos do Sisnama, do SNVS e do Suasa,ou em normas
técnicas;.
II – pilhas e baterias;
III – pneus;
IV – óleos lubrificantes, seus
resíduos e embalagens;
V – lâmpadas fluorescentes, de
vapor de sódio e mercúrio e de luz
mista;
VI – produtos eletroeletrônicos e
seus componentes.”
É, no entanto, na
dinâmica da coleta do lixo, que iremos encontrar o campo mais fértil para o
florescimento de boas práticas pela população, de modo a colaborar
decisivamente para a solução do destino dos resíduos sólidos.
A Lei 12305/10 preconiza
a chamada “coleta seletiva”, hábito que de há muito já vem sendo adotado com
sucesso em numerosos países, e mesmo entre nós, principalmente na Região Sul.
Dispõe o seu artigo 36:
“Artigo 36 – No âmbito da
responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, cabe ao titular
dos serviços públicos de limpeza e de manejo de resíduos sólidos, observado, se
houver, o plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos:
I – (...).
II – estabelecer sistema de coleta
seletiva;”
Diante da notória
dificuldade de se instalar tais sistemas em todos os recantos no País,
sugere-se enfaticamente que, no melhor espírito da solidariedade e
compartilhamento das atuações, preconizado pela própria lei em seu artigo 6º,
inciso VI, que todos os cidadãos, mesmo antes de tal implementação, adotem
postura pro ativa e procedam imediatamente, no âmbito de seus lares, à coleta
seletiva de seus resíduos. Mesmo que em fase embrionária, separando
simplesmente o lixo orgânico (“lixo molhado”) do lixo inorgânico (“lixo seco”),
consideramos que tal prática inaugurará uma nova e definitiva era na solução do
problema. Na seqüência, se o Poder Público ainda não recolhe seletivamente o
lixo, já existem numerosas cooperativas no seio da sociedade civil, que se
dispõem a empreender tal coleta seletiva, em domicílio. Relembre-se
que o “lixo seco” tem alto potencial de reaproveitamento, e conteúdo econômico
relevante.
A alternativa depende,
volte-se a frisar, da iniciativa de cada um de nós.
A principiologia como solução na área judicial
São numerosas, outrossim,
as situações acerca do manejo dos resíduos sólidos que a lei não prevê, a gerar
conflitos de interesse em quantidade crescente, que não raro irão desaguar no
Judiciário.
Felizmente, na era do
pós-positivismo, os princípios foram alçados à condição de norma jurídica para,
ao lado das regras escritas, apontar o verdadeiro Direito, ferramenta essencial
do magistrado na prolação de sua sentença.
À guisa de exemplo, apontem-se
as questões concernentes ao fechamento dos depósitos de lixo – denominados
“lixões” – e sua substituição pelos “aterros sanitários”.
Solução muito mais
adequada – embora longe de ser ideal – o aterro sanitário atende com proveito aos
preceitos contidos na Lei 12305/10, desde que, é claro, seja revestido do
aparato tecnicamente recomendado para a sua implantação e manutenção ao longo
dos anos.
Todavia, no que toca à
localização de tais aterros, o conflito de interesses torna por vezes difícil a
sua escolha. É que todos querem a solução cômoda, sem atentar para o óbvio fato
de que afastar o lixo de si significa aproximá-lo de outrem.
O dilema aliás, é próprio
dos seres humanos, imperfeitos e egoístas em essência. O instinto
de sobrevivência e auto-conservação que temos, muitas vezes nos dificulta a
visão do conjunto, e nos impede de perceber que, ao fim e ao cabo, fazemos
parte de um único todo.
Muitos louvam a
construção de presídios de segurança máxima, desde que sejam erguidos em outro Estado da
Federação. De outro lado, é fácil criticar o corte de árvores pelo vizinho,
difícil é renunciar a um projeto construtivo para preservar árvores em seu
próprio terreno...
Assim, a escolha, pelo
Poder Público, do local de um novo aterro sanitário constituirá sempre um foco
de interesses contrários na comunidade local. Ninguém há de querer um aterro
nas proximidades de seu lar e muitos serão as alegações sobre a inconveniência
e prejuízos de toda ordem para a população das cercanias.
Chamado a se pronunciar
(no bojo de ações populares, ações civis públicas ou outros procedimentos
judiciais), o magistrado deverá, na busca da solução, servir-se da gama de
princípios aplicáveis ao caso concreto, alguns deles inclusive referidos na
própria lei dos resíduos sólidos.
Um deles (que lá está, no
inciso XI do artigo 6º ), mas que precede em muito a edição da lei, base que é
para a constituição da sociedade democrática, vem a ser o princípio da razoabilidade.
Através dos seus subprincípios doutrinariamente identificados (adequação,
necessidade ou exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito), poderá o
julgador aquilatar se o alvitre cogitado quanto à implantação do aterro em
determinada localidade atende ao fim almejado, ao mesmo tempo em que se apresenta como a
única solução viável. Por fim, há de se examinar, com o auxílio de perícia
idônea e eficaz, se a construção e manutenção do aterro sanitário procurará minorar
tanto quanto possível as conseqüências gravosas à comunidade vizinha ao
empreendimento, evitando vazamento de dejetos para o subsolo, organizando o
fluxo de caminhões de lixo nas vias próximas , e adaptando as mesmas à nova
realidade.
Esta é apenas uma entre
tantas questões que se apresentam, e outras hão de surgir acerca de tema tão delicado quanto
importante para a vida – e sobrevida – de todos nós enquanto habitantes do
planeta.
Conclusão:
De qualquer sorte, estamos
cientes de que é longo o caminho a ser percorrido, e que jamais vislumbraremos
seu fim. Todavia, podemos pavimentá-lo para as gerações futuras, e o manejo
consciente dos instrumentos jurídicos de que hoje dispomos pode servir de norte
às soluções que hão de vir.
Rio de
Janeiro, julho de 2012