Este ano, uma série de conflitos envolvendo indígenas e fazendeiros chamaram a atenção da imprensa para a difícil situação dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul. A dimensão dos problemas sensibilizou a sociedade que se manifestou principalmente por meio das redes sociais. Para comentar a questão indígena no Mato Grosso do Sul e a aplicação do Direito de Família nas comunidades indígenas da região, convidamos o Juiz da Primeira Vara de Família de Campo Grande e diretor do IBDFAM, David de Oliveira Gomes Filho. Confira a entrevista:
A recente exposição na mídia da situação dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul incita reflexões sobre o modo de vida das comunidades indígenas do País. No âmbito da família, quais as principais contendas nas aldeias indígenas dessa região?
De fato, estas notícias nos fazem refletir sobre a vida destes povos, especialmente quando se noticia a possibilidade de suicídio coletivo. É preciso dizer, entretanto, que não está na cultura dos indígenas o suicídio por causas políticas. Isto está mais para os homens bomba do oriente médio.
Os casos de suicídio de jovens indígenas está relacionado às crises existenciais e à desesperança. Eles são humanos como nós, eles raciocinam e percebem a diferença social entre os índios e os demais brasileiros. Eles vivem um desajuste social e experimentam um desajuste consigo mesmos.
Eu não diria que o problema esteja exclusivamente na demarcação de terras, mas na falta de uma política social que permita aos indígenas se desenvolverem conforme a opção de cada um. Nem todos querem terra, mas todos querem respeito e dignidade.
É um erro querer impedir o avanço de uma civilização, inclusive no aspecto cultural. A visão romanceada que muitos têm dos indígenas, a manutenção forçada de suas culturas, ao contrário do que muitos pensam, não os favorecem.
Estes povos são mantidos culturalmente no século XV, enquanto o resto do mundo vive as facilidades do século XXI. Se os alemães, os ucranianos, os africanos, os japoneses, os italianos, os portugueses podem experimentar o mundo moderno, sem largar seus traços culturais, por que os indígenas devem ser excluídos deste mundo em nome dos seus traços culturais?
O envolvimento cultural da sociedade moderna na sociedade indígena anda a passos lentos, quase sempre através da religiosidade. O Estado tem presença precária nestas comunidades.
Em algumas etnias, existe uma influência muito grande das igrejas evangélicas. O povo Terena, por exemplo, valoriza a oratória, se encanta com "o saber falar" e tem uma identidade muito forte com as cidades. São pessoas que desejam vir às cidades, estudar, formar-se, passar num concurso público. O povo Kaiowá, por sua vez, prestigia muito seus feiticeiros, possui um rigor cultural elevado que dificulta o ingresso da influência da igreja e, na maioria, não gosta da cidade.
De regra, as contendas ocorridas nas aldeias acabam sendo resolvidas nas próprias aldeias pelos costumes de cada etnia e eles trazem ao Poder Judiciário apenas os casos de extrema violência não acomodados pelas suas lideranças, pedidos de registro tardio, previdenciário ou litígios possessórios com não-índios.
Quando se percebe a presença de indígenas em demandas de família, são pessoas integradas à sociedade, com vida e profissão de qualquer brasileiro normal.
Sabe-se que os indígenas têm estatuto próprio. Nesse sentido, como o senhor avalia a aplicação do Direito de Família atual nas comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul?
Esta aplicação é precária, quando não é inexistente. Inicialmente, deve ser dito que os indígenas se reúnem em vários grupos étnicos, com histórias diferentes, culturas diferentes, com línguas diferentes, com uma diversidade de comportamentos enorme. A etnia Terena e a Kaiowá, por exemplo, são tão diferentes culturalmente entre si quanto os chineses são dos gregos. Não é correto nos referirmos aos indígenas como se fossem um só povo ou uma só cultura. Em Mato Grosso do Sul, temos, salvo engano, dez povos diferentes.
No geral, o que há de uniforme entre eles, é que seguem rigidamente regras próprias, que não reconhecem a autoridade das leis brasileiras e que a noção de família é diferente.
Nós criamos a noção de família na nossa cultura, sob influência judaico-cristã. Para eles, a noção é mais relacionada com os laços de parentesco e, em cada comunidade, existe uma forma própria de resolver suas questões.
Para que exista divórcio, por exemplo, é necessário que exista um casamento e a noção de casamento que conhecemos em nossa sociedade é a que vem da noção religiosa que sempre nos influenciou, a "sagrada família cristã". É a visão do casamento para a vida toda, da fidelidade conjugal como algo inflexível.
Os Kaiowás, se não me engano, aceitam a poligamia. Na verdade, existe uma espécie de dote para aquele que toma uma mulher para si. Os cunhados trabalham para o marido da sua irmã. Assim, quanto mais mulheres você tem, mais cunhados você consegue para trabalhar para você.
O casamento, por sua vez, é circunstancial, não é para sempre. Ele não chega a ser uma instituição daquelas culturas. Quando o amor acaba, separam sem maiores traumas e o marido muitas vezes fica com a cunhada ou com outra mulher. As crianças costumam ficar com mãe e estas mulheres arrumam outros maridos. Os homens, contudo, nem sempre aceitam os filhos do outro, quando são do sexo masculino. No geral, eles valorizam os laços de parentesco, são autônomos, não reconhecem a autoridade do Estado e costumam ser menos preconceituosos com a infidelidade.
As sociedades costumam ser patriarcais e as mulheres extremamente submissas.
No dia 19 de abril de 2012 foi instituída a resolução conjunta nº. 3 do Conselho Nacional de Justiça, e do Conselho Nacional do Ministério Público. Esta resolução regulamenta o registro civil dos índios. Sendo facultativo, em que beneficia o índio que optar pelo registro?
Até pouco tempo atrás, a realidade registral dos indígenas era de muita dificuldade pelo desconhecimento da lei e pelo consequente medo de alguns cartorários antigos em proceder ao registro de nascimento.
Os indígenas, por sua vez, apenas procuram regularizar seus registros civis quando necessitam de algum documento. Fazem isto quando querem votar, ou quando querem pedir algum benefício previdenciário, ou quando decidem estudar ou trabalhar nas cidades. É neste momento que eles procuram os cartórios para fazerem seus registros de nascimento e muitos cartórios tinham por costume encaminhá-los à Justiça Estadual para propor uma ação de registro tardio, ignorando totalmente o estatuto do índio (Lei n. 6.001/73).
Quando assumi a comarca de Bonito, MS, percebi a enormidade de processos desta natureza e, em audiências com os indígenas, identifiquei suas dificuldades, verdadeiras misérias. Imediatamente fiz uma ordem de serviço (002/2007/PJ/Bonito/MS) basicamente repetindo o que diz a lei sobre o registro de indígena e orientando o Cartório da região para efetuar os registros.
A Corregedoria do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul tomou conhecimento do ato e, depois de alguns estudos, emitiu um provimento a respeito (Provimento n. 18/2009) abrangendo a orientação de se facilitar o registro de indígenas para todo o Estado.
Posteriormente, o CNJ emitiu a resolução conjunta n. 3, que deu projeção nacional ao ato.Graças a esses atos, os respectivos cartórios de registro civil estão mais seguros em efetuar os registros de nascimento e quem ganha são os indígenas, que não precisam enfrentar a morosidade e toda a ritualística de um processo judicial para conseguir seu documento.
Na sua opinião, o que deve ser feito para que o Direito de Família, principalmente a legislação que ampara as mulheres (Lei Maria da Penha), as crianças e adolescentes (ECA), chegue às comunidades indígenas, sem ferir os costumes deles?
Pelos motivos expostos, é difícil conciliar estes dois mundos, sem traumas culturais. Veja que existem relatos de costumes em algumas etnias, que para a nossa cultura são bizarros, mas que alguns deles praticam com naturalidade. Meninas que passaram pela menarca, por exemplo, são consideradas aptas para o sexo e ele ocorre, às vezes, à força. Se existe algum desconforto pelo pai da "vítima", o cacique é chamado e ele soluciona o conflito. Há comentários de casos de infanticídio de crianças deformadas e de bebês gêmeos, neste último caso, por considerá-los de mau agouro, no entanto eu não saberia dizer se é algo que ainda aconteça nos dias de hoje ou se é algo de algumas poucas décadas passadas.
A imposição dos costumes da nossa sociedade ao da sociedade deles importaria na deformação daqueles costumes e, num cenário pacifista, exigiria a colaboração dos próprios indígenas, pois suas aldeias costumam estar fechadas para estranhos, especialmente para o policiamento e para o Conselho Tutelar. Qualquer coisa que se tente fazer lá passa pelo filtro da Funai.
Hoje, na prática, quando as situações são consideradas graves para os próprios índios, são eles quem permitem que a notícia chegue até a Justiça. Quando eles entendem que não é, ninguém fica sabendo.
do site do IBDFAM