Recentes decisões jurisdicionais no tema da luta coletiva pelo direito à cidade atravessaram a armadura individualista das razões proprietárias e incorporam como fundamentação elementos normativos que garantem um olhar mais adequado à realidade socioterritorial dos conflitos. O precedente das ocupações da Izidora[1] se confirma na resistência vitoriosa dos moradores da Vila Soma, em Sumaré. Emblemática decisão proferida no último dia 10 de novembro pelo relator Dr. Marcelo Semer, da 10ª Câmara de Direito Público do TJ-SP, reconheceu a argumentação da Defensoria Pública de São Paulo alegando não haver comprovação de adequação dos meios para execução do ato de despejo pela Polícia Militar, em face das 10 mil famílias residentes da Vila Soma. Trata-se, no caso, de Ação Civil Pública interposta pelo Ministério Público estadual requerendo a desocupação da área por suposta violação da ordem urbanística e ambiental pelos moradores, à qual foi oposto pedido de garantias prévias à remoção pela Defensoria, negado em primeira instância e acolhido, por hora, pelo Tribunal.
A estratégia jurídica orquestrada para defesa do direito individual de propriedade no território da Vila Soma reitera prática abusiva que vem se afirmando como a “cartilha pró-despejo” dos poderes públicos: primeiro, a ação de reintegração de posse com liminar deferida a despeito do cumprimento da função social da propriedade pelo titular do domínio e sem a escuta dos afetados e, segundo, ação civil pública para reforçar as razões do despejo sob o escudo da ordem urbanística e ambiental, ambas supostamente ameaçadas pelos moradores e seus modos de vida.
Nessa vila de Sumaré a situação perfaz a mimese grotesca do urbanismo periférico; a luta de classes se trava na e pela cidade, entre as milhares de trabalhadoras e trabalhadores que defendem seus direitos de morar e viver, autoconstruindo seus territórios em terreno ocioso há mais de 20 anos, e o mercado especulativo rentista e imobiliário, patronos da cidade-negócio, na sanha pelo valor de troca do imóvel bem localizado, cuja virtualidade econômica nega qualquer uso não mercantil do exercícios de direitos e, tudo isso, sob o respaldo irresponsável dos poderes públicos.
Contudo, é o processo de resistência cotidiana dos moradores que se afirma como a dimensão positiva a abrir outros caminhos e a furar o cerco do conservadorismo proprietário no Poder Judiciário. A Vila Soma resiste. Táticas de litigância que somam esforços da advocacia popular, dos movimentos sociais e agora da Defensoria Pública, abalaram a lógica de defesa abstrata do direito de propriedade e alheia à dinâmica de vida daquele território e demandaram uma virada concreta, responsável e atenta à dimensão coletiva do conflito pela decisão jurisdicional.
Essa guinada conclama, ao menos, duas ponderações óbvias: primeiro, há milhares de vidas em jogo que não desaparecem numa mera canetada institucional ordenando o despejo e, segundo, decisões jurisdicionais em conflitos coletivos são atos que se prolongam no tempo e no espaço, exigindo preparo, planejamento e garantia de direitos.
Não há que se falar mais de decisões que, num passe de mágica, separam o que é de direito do como e onde estão sendo esses direitos.
Recentemente, decisão do Superior Tribunal de Justiça no caso das ocupações da Izidora em Belo Horizonte se despiu das armadilhas transcendentais das razões privatistas, individuais e sem nexo com a realidade e encarou seus efeitos territoriais como a estratégia possível para se garantir os direitos humanos no território. A decisão incorporou a experiência daqueles que irão sofrer suas consequências e entendeu que a indeterminação do modus operandi a ser adotado para a execução do despejo faz prova pré-constituída do direito de exigir as garantias fundamentais aos moradores da área de conflito. Esse foi o pano de fundo que repercutiu na decisão do TJ-SP, e que traça uma linha de continuidade entre as resistências da Izidora e da Vila Soma.
Três aspectos da decisão que suspendeu o despejo na Vila Soma devem ser destacados, evidenciando a rota jurídica que o juiz delineou rumo à efetivação dos direitos humanos, em sua dimensão coletiva, no território em conflito. Apresento-as como lições contra-cartilha:
1. A ordem urbanística e ambiental se refere ao espaço urbano onde vivem pessoas e não ao espaço abstrato e asséptico do direito formal de propriedade.
Ao contrário da fundamentação apresentada na Ação Civil Pública, que se valeu da defesa da ordem urbanística e do equilíbrio ambiental para sustentar novo pedido de desocupação forçada na Vila Soma, a decisão do TJ-SP territorializou a discussão para confirmar que esses direitos difusos tem espaço-temporalidade determinada e se realizam na cidade e para as pessoas. É corriqueiro o abuso perpetrado pelos baluartes da defesa da ordem urbanística e ambiental e, muitas vezes, de forma curiosa, representantes do Ministério Público e de Procuradorias Municipais sustentam pedidos desajustados com a realidade, como a curiosa violação da ordem urbanística pelas ciclovias na cidade de São Paulo e o risco ao meio ambiente equilibrado realizado por catadores de material reciclável em Curitiba.
Como bem entendeu a decisão do Dr. Marcelo Semer, a ordem urbanística é vocacionada ao direito à cidade e esse direito é para as pessoas e não para os negócios privados. No caso da Vila Soma, o juiz entendeu que não há que se falar em violação à ordem, pois o direito à moradia adequada integra o direito às cidades sustentáveis. Cite-se:
Nem mesmo a ordem urbanística, no caso a irregular ocupação do solo urbano pela ocupação, que motivou o ajuizamento desta ACP, pode justificar a colocação de três mil famílias em desabrigo. Isto porque, consoante já se afirmou em decisão anterior, o direito à moradia é componente indissociável do conceito de cidade sustentável (a teor do art. 2º, inciso I, da Lei 10.257/01, Estatuto das Cidades) (fls. 149).
Portanto, a primeira lição que a decisão atesta é que a irregularidade urbanística de ocupações urbanas de moradia em conflito de posse/propriedade não configura violação à ordem urbana a legitimar medida de desocupação, tendo em vista o direito à moradia ser elemento indissociável do direito à cidade.
2. Ocupações de moradia são tema de direitos humanos e não caso de polícia.
A decisão de suspensão do despejo na Vila Soma também avança na proteção do direito à moradia adequada ao se fundamentar no marco regulatório internacional de direitos humanos, articulando de forma sistemática as normativas nacionais e os parâmetros internacionais de garantia e proteção de direitos que são reconhecidos em nossa ordem interna via ratificação dos tratados e acordos sobre o tema. Dentre outras fontes citadas, a decisão se vale do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e, principalmente, seu Comentário Geral nº 7 sobre despejos forçados, para construir uma hermenêutica que associa o direito fundamental à moradia, o direito à cidade e a participação dos afetados nas decisões, com a responsabilidade do estado, face à inevitabilidade do despejo, de melhorar as condições de vida dos atingidos. Se não, veja-se:
as normativas internacionais, que também nos são aplicáveis em decorrência da ratificação do pacto, situam as obrigações sobre o despejo forçado em dois momentos: a-) a decisão de fazer a remoção, em que a regra deve ser a excepcionalidade (apenas quando as medidas de conservação não se mostrem viáveis) e b-) as medidas de realocação, contemporâneas ao cumprimento da ordem, como alternativas para evitar ou reduzir danos com a sua realização. É neste segundo que o processo se encontra. Se o Estado tem a obrigação de melhorar as habitações e não piorá-las, e deve evitar, a todo custo, a colocação de pessoas sem moradia, expostas a violações de outros direitos humanos, e, enfim, quando inevitável a remoção, ainda assim deve tratar de encontrar soluções apropriadas a ele, é certo que não basta ao escorreito cumprimento da ordem a mera utilização de força policial para desalojar os moradores - sem qualquer proteção a seus bens ou local em que possam abrigar-se (fls. 148-149).
A situação das famílias envolvidas é compreendida em seu contexto de vulnerabilidade e risco. E a ameaça de despejo como um fator agravante, determina a consideração da dimensão complexa e coletiva do conflito envolvendo diversas situações jurídicas relacionadas à segurança da população, mulheres, crianças e idosos, à defesa da integridade física e a proteção do direito à moradia. A decisão jurisdicional que determina o cumprimento do despejo passa a ser entendida como um ato complexo e seu adequado cumprimento exige, para além da força policial, que às garantias prévias se associem a participação e a negociação entre as partes envolvidas e o poder público.
Crianças em idade escolar, sujeitas a perda de aulas; idosos ou deficientes submetidos a tratamento; vínculos laborais de moradores compatíveis com a longevidade da ocupação. Há diversos danos potenciais a serem equacionados e/ou minimizados que incompatibilizam com uma remoção sem planejamento, cuidado e estratégias de realocação (fls. 151).
A segunda lição, dessa forma, indica que o conflito socioterritorial da Vila Soma é matéria de direitos humanos a demandar aplicação imediata das normativas internacionais e a posição de vulnerabilidade associada à desocupação forçada ameaça e fragiliza a efetivação de direitos no território e, portanto, a responsabilidade do estado envolve o enfretamento prévio e apropriado das diversas situações jurídicas a exigirem garantias específicas anteriores à remoção.
3. As ordens de despejo são potencialmente violadoras de direitos e, portanto, as decisões jurisdicionais devem determinar o compromisso dos agentes envolvidos com a salvaguarda das garantias prévias vertical e horizontalmente.
A decisão do TJ-SP representa um importante precedente na luta pela efetivação dos direitos humanos do ponto de vista coletivo, uma vez que o modo de vida das ocupações e a dignidade dos moradores são os elementos que justificaram a reiteração do precedente do STJ no caso Izidora. Foi reconhecido, mais uma vez, que a indeterminação do modus operandi a ser adotado na execução do despejo faz prova pré-constituída do direito de exigir as garantias fundamentais por parte dos moradores. Não há que se falar de despejo sem plano de reassentamento, consulta popular e garantia de direitos. Conforme atestou a decisão:
negando-se o juízo a exigir garantias do Município em relação ao futuro abrigamento dos moradores; do Estado, quanto à proteção contra violações no cumprimento da ordem, que atentem contra a vida ou a saúde dos envolvidos; das empresas-rés, quanto ao transporte e armazenamento dos bens pessoais dos ocupantes; bem ainda de integrar representantes dos moradores neste planejamento, é prudente que a desocupação seja suspensa.
Ao assim fazê-lo, a decisão apresenta a terceira lição, deixando claro que o poder público e os particulares tem responsabilidade por suas decisões potencialmente violadoras de direitos no território e, nesse caso, cabe à decisão jurisdicional promover a aplicação vertical e horizontal dos direitos humanos de forma a determinar a suspensão da ordem de desocupação até que sejam cumpridas e determinadas as garantias à população.
Timidamente, a luta pelo direito à cidade arromba as portas do poder judiciário para gritar que a Izidora Soma e que somos muitas!
Julia Ávila Franzoni é advogada popular associada da Terra de Direitos e membro da Rede Margarida Alves, doutoranda em direito pela UFMG e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Indisciplinar.
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