segunda-feira, 23 de junho de 2014

Agricultura Familiar e o Novo Mundo Rural


Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
DOSSIÊ
Agricultura Familiar e o Novo Mundo Rural
1 Este trabalho é baseado em grande medida nas pesquisas dos colaboradores consultores do Convênio FAO/INCRA, cujos
resultados encontram-se sintetizados em Guanziroli, C. et al (2001).
*Professor do Instituto de Economia da Unicamp.
** Professor do Instituto de Economia da Unicamp e Chefe Geral da Embrapa Monitoramento por Satélite.
*** Professor do Departamento de Economia da UFF e Consultor da FAO.

ANTÔNIO MÁRCIO BUAINAIN*, ADEMAR R. ROMEIRO**, CARLOS GUANZIROLI***
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347


O debate sobre a questão agrária no Brasil é pródigo em
criar falsos dilemas e polêmicas. A questão atual tem sido
opor o futuro da agricultura familiar ao que vem sendo
caracterizado como .novo mundo rural., como se um exclu
ísse o outro. Os resultados das pesquisas sobre o rurbano
brasileiro são ricos e evidenciam a expansão de novas formas de ocupação
no meio rural, vinculadas direta ou indiretamente a atividades essencialmente
urbanas. Este fenômeno que, no Brasil, ainda é limitado do ponto
de vista geográfico, tende, sem dúvida, a crescer. Não se trata, no entanto,
de um fenômeno novo. O desenvolvimento do meio urbano deu-se, sempre
e em todo lugar, pela apropriação dos espaços rurais. Kautsky, em sua
obra clássica, já chamava a atenção para a importância das ocupações
não-agrícolas no meio rural, associadas tanto à expansão da indústria rural
como do setor de serviços. Tampouco é novo o fato de as ocupações
periurbanas serem impulsionadas por atividades urbanas. Isso vale para
toda a agricultura que produz insumos e bens finais respondendo à de-
manda e dinâmica do mundo urbano. Neste sentido, não se trata de negar
que essas .novas. atividades vêm ganhando espaço, mas de perguntar se
este fato, por si só, é suficiente para negar que o desenvolvimento com
eqüidade, no meio rural brasileiro, ainda passa pelo fortalecimento da agricultura
familiar. Este artigo retoma o debate desde esta perspectiva: ainda
há espaço para a agricultura familiar no Brasil? Trata-se, então, de decidir o
que fazer com uma parte significativa do setor rural brasileiro e não apenas
com o segmento dos sem terra ou subocupados que vêm sobrevivendo
com base em trabalhos não-agrícolas no meio rural.
1. As análises sobre as transformações recentes na
agricultura brasileira
Nos anos 70 e 80, as transformações que estavam ocorrendo na agricultura
brasileira eram analisadas como similares àquelas ocorridas nos
países capitalistas avançados, tanto em seus aspectos positivos como nos
negativos. Nos anos 70, sustentava-se que a chamada .questão agrícola.
havia sido superada pelo processo de modernização baseado na mecaniza
ção e na utilização de variedades selecionadas de sementes e de insumos
químicos. Nos anos 80, sustentava-se que este processo de modernização
aprofundara a integração da agricultura com os capitais industriais, comerciais
e financeiros que a envolvem, formando o que foi chamado de .complexos
agroindustriais.

Dentro deste quadro analítico, a reforma agrária é vista como anacr
ônica, desnecessária e insustentável. Para ser competitivo e sobreviver, é
preciso adotar um .pacote. tecnológico que exige elevados investimentos,
bem como possuir uma área mínima relativamente grande ou ocupar um
nicho de mercado, sobretudo pela integração ao complexo agroalimentar.
O movimento de concentração da produção agropecuária em um número
cada vez menor de estabelecimentos cada vez maiores era considerado
parte de uma tendência .natural. e necessária que já ocorrera nos países
capitalistas desenvolvidos e que, portanto, não poderia ser freada, sob pena
de provocar um atraso tecnológico no setor agropecuário, com impactos
negativos no próprio processo de desenvolvimento econômico.
Na década de 90, a redução relativa do crescimento do emprego
rural estritamente agrícola em contraposição ao aumento do emprego rural
não-agrícola é apresentada como mais uma evidência de que ....a cria-
ção de empregos não-agrícolas nas zonas rurais é. portanto, a única estraté-
gia possível capaz de, simultaneamente, reter essa população rural pobre
nos seus atuais locais de moradia e ao mesmo tempo, elevar o seu nível de
renda. (Graziano da Silva, 1999, p. 26). Tal como no caso do êxodo rural
nos anos 70, este fenômeno é interpretado como resultado de um processo
histórico inelutável, contra o qual é ilusório lutar. Seriam evidências de
que a estrutura produtiva do setor agrícola brasileiro se aproxima daquela
dos países capitalistas desenvolvidos, tornando desnecessárias políticas reformistas
arcaicas, como uma reforma agrária que não fosse apenas de
.cunho social.. Nesse sentido, tal como ocorreu nos anos 70 e 80, esta
visão do novo rural, tal como vem sendo veiculada, presta-se como justificativa
intelectual para políticas que, em última instância, mantêm o status
quo agropecuário do país, caracterizado por forte desigualdade econômica,
social, e elevados níveis de pobreza. Com efeito, nos últimos anos, o
argumento do novo rural vem sendo utilizado para justificar a necessidade
de abandonar políticas agrárias e agrícolas voltadas para os setores mais
fragilizados da produção familiar, em benefício de políticas de geração de
empregos rurais não-agrícolas, limitando-se o apoio às atividades propriamente
agrícolas das famílias rurais, àquelas consideradas competitivas por
ocuparem nichos de mercado, de produtos especiais de alto valor agregado,
cuja produção requer o uso intensivo de mão-de-obra.
Como no passado, essas análises não levam na devida conta as
especificidades que distinguem a situação do Brasil daquela dos países
capitalistas desenvolvidos. Aqui a proporção da população economicamente
ativa vivendo em áreas rurais (pouco menos de um quarto do total da
população economicamente ativa) é similar àquela observada nos EUA e
nos países europeus, mas um abismo separa suas condições de inserção
no mercado de trabalho daquelas observadas nesses países, fruto de processos
históricos distintos de desenvolvimento rural. Para começar, aqui,
cerca de 65% dessa população trabalha em atividades estritamente agrícolas
contra, por exemplo, cerca de 10% nos EUA.
É preciso considerar ainda que, nos EUA, o decréscimo da população
ocupada na agropecuária foi fruto de um processo relativamente equilibrado
de êxodo rural. Equilibrado, na medida em que impulsionado principalmente
pela expansão das oportunidades de emprego urbano-industrial.
Durante um longo período, uma fronteira agrícola aberta garantiu às
ondas de imigrantes que lá aportavam a possibilidade de acesso à terra. O
esgotamento da fronteira agrícola, por sua vez, coincide com o arrefecimento
do ritmo da imigração. A elevação do custo de oportunidade do trabalho,
por sua vez, constituiu-se no fator decisivo não apenas para moldar o processo
de modernização (principalmente da mecanização) da agricultura
americana como para elevar os salários urbanos e toda a conformação da
economia americana. A verdade é que o êxodo rural nos EUA se explica
principalmente pela atração exercida pelo setor urbano-industrial e não
pela repulsão da falta de alternativas de sobrevivência minimamente condigna
no campo.
Com relação à evolução do emprego rural não-agrícola, inicialmente
seu crescimento decorreu da modernização associada à expansão de atividades
industriais e de serviços, a montante e a jusante das atividades estritamente
agrícolas. Com o tempo, indústrias de outros setores industriais come
çaram também a buscar distritos rurais para expandir suas instalações.
Paralelamente, o emprego rural não-agrícola se expande com o aumento da
afluência, tendo por base um processo de redistribuição dinâmica da renda
(como por exemplo serviços gerados pela expansão das residências secund
árias campestres) e com a busca de áreas rurais por citadinos fugindo do
stress das grandes cidades e/ou devido às novas possibilidades de trabalho a
domicílio oferecidas pela expansão dos sistemas de comunicação
informatizados. Como resultado desse processo, a grande massa de residentes
rurais é composta de populações de origem urbana com níveis de escolaridade
e/ou formação profissional médio e alto, exercendo todo tipo de
atividades industriais e, principalmente, comerciais e de serviços.
Pari passu com o progresso técnico, que tornava dispensável o trabalho
de todos os membros da família, no campo, a evolução do emprego
rural não-agrícola representou uma oportunidade para aumentar a sua renda
familiar. Como demonstrado em muitos estudos, foi esta evolução dos
empregos rurais não-agrícolas, mais do que as políticas de apoio à agricultura,
que permitiu a equiparação do nível de renda do produtor familiar
com aquele dos assalariados urbanos. É muito importante ter claro, ainda,
que as ocupações rurais não-agrícolas são uma oportunidade de
complementação de renda para agricultores que representam entre 10%
(caso dos EUA) a 20% da PEA rural.
Compare-se esse quadro com o ocorrido no Brasil. O acesso às terras
livres pelas massas de imigrantes e libertos foi bloqueado e, como resultado,
as massas rurais permaneceram cativas da insegurança da posse da
terra, como reserva de trabalho barato de uma classe de latifundiários sem
a menor visão estratégica de construção de uma nação (com exceção do
Sul, onde, por razões estratégicas de segurança de fronteiras, criou-se uma
forte base de produtores agrícolas familiares).
A forte concentração da renda no campo, decorrente dessas condi-
ções e o tipo de inserção do país na divisão internacional do trabalho limitaram
a expansão do setor urbano-industrial. Essas condições estão na raiz
dos fortes desequilíbrios distributivos observados no processo de urbaniza-
ção no Brasil. Cada vez mais, o êxodo rural configurou-se como um êxodo
de refugiados do campo, ao contrário do que ocorreu nos EUA e na Europa,
onde os fatores de atração predominaram sobre os fatores de expuls
ão. As conseqü.ncias socio-econômicas desse processo são conhecidas.
Os que permaneceram no campo continuaram em situação precária, sem
acesso ou com acesso limitado à terra, à educação e demais serviços de
infra-estrutura social e aos benefícios da política agrícola.
Por conseguinte, para a maior parte da grande massa da PEA rural no
Brasil . cerca de 65%, que se encontra ocupada em atividades agrícolas .
a expansão, a partir dos anos 80, dos empregos rurais não-agrícolas vai
representar não uma ampliação das oportunidades de trabalho para os
membros da família tornados supérfluos pelo progresso técnico, mas sim
uma chance de sobrevivência, em geral precária, para produtores sem acesso
ao progresso técnico, à terra suficiente, crédito, etc. Estudos sobre sistemas
de produção familiares (FAO/INCRA) mostram que, quando os produtores
familiares contam com apoio suficiente, a tendência é de redução
da importância das rendas obtidas fora da unidade familiar. Isto porque o
custo de oportunidade do trabalho é muito baixo também em atividades
não-agrícolas.
Em outras palavras, o produtor familiar, quando recebe apoio suficiente,
é capaz de produzir uma renda total, incluindo a de autoconsumo,
superior ao custo de oportunidade do trabalho. Neste sentido, não são
corretas as analogias com a situação nos países desenvolvidos, onde as
remunerações obtidas com atividades não-agrícolas elevam a renda média
do setor rural porque, aqui, o potencial de geração de renda do setor
agrícola familiar está longe de ser plenamente utilizado, além do fato de os
dados da PNAD subestimarem as rendas agrícolas.
Portanto, como esperar que o setor urbano-industrial brasileiro, cuja
estrutura produtiva se encontra deformada e limitada pela fortíssima concentra
ção da renda, tenha o mesmo potencial de geração de empregos
rurais não agrícolas que aquele nos EUA e na Europa? E mais, para atender
a uma população rural ocupada em atividades agrícolas respectivamente 6
a 3 vezes maior em termos relativos? O lógico seria estimular ao máximo,
sim, a geração de empregos rurais não-agrícolas, mas principalmente aqueles
que seriam gerados através do apoio à agricultura familiar. É preciso, embora
tardiamente, dar condições para que a produção familiar no Brasil
possa cumprir um papel semelhante àquele que cumpriu nos países capitalistas
desenvolvidos.
Os fatos e a história mostram claramente que, apesar de todas as
mudanças ocorridas e das oportunidades perdidas, ainda se faz necessário
no país, como condição para a eliminação da pobreza e de suporte essencial
a um processo de redistribuição dinâmica da renda, um projeto de
desenvolvimento rural apoiado na produção familiar. Produção familiar
predominantemente descapitalizada ou pouco capitalizada, mas que nenhum
óbice tecnológico impede que inicie um processo de modernização
e se torne progressivamente média e grande, na medida em que se eleva o
custo de oportunidade do trabalho. Não é demais lembrar que há apenas
20 anos, o Estado de Mato Grosso era ocupado por agricultores familiares
em busca de terra, trabalho e novas oportunidades. São os mesmos que
hoje cultivam centenas de hectares, constroem estradas, hidrovias e geram
renda, trabalho e progresso local, e para todo o País.
Em estudo recente, o Secretário de Desenvolvimento Rural, Prof. José
Eli da Veiga, defende uma posição2 que vai neste sentido, ou seja, de que
é preciso formular políticas de desenvolvimento rural integrado que contemplem
os diversos aspectos de uma mesma realidade: políticas agrárias
e agrícolas para o fortalecimento da agricultura familiar juntamente com
políticas de geração de novas oportunidades de empregos rurais não-agrí-
colas. Além disso, esse conjunto de políticas tenderia a ter uma distribui-
ção espacial bem determinada, dado que há regiões onde predominam as
atividades agrícolas e rurais não-agrícolas derivadas da agricultura e regi-
2 VEIGA, J. E. O Brasil Rural Precisa de uma Estratégia de Desenvolvimento. (Série Textos para Discussão n. 1) Brasília:
NEAD/MDA, 2001.
Ações onde claramente a dinâmica econômica nos espaços rurais não é mais
determinada pelas atividades agrícolas.
Este é um quadro analítico bastante consistente. Porém, a maior dificuldade
do estudo está na idéia de que os setores de produção familiar
que poderiam ser objeto de políticas específicas de apoio são limitados,
excluindo como estruturalmente inviáveis uma grande massa de produtores.
As evidências mostram que a viabilidade da agricultura familiar sob as
mais diversas formas3 é bem maior do que é suposto neste estudo. Em
síntese, há que se ter cuidado na definição dos critérios de corte, sob pena
de excluir um contigente importante de produtores hoje marginalizados
não por uma inviabilidade estrutural, mas precisamente pela ausência de
políticas de apoio.
2. A importância da agricultura familiar no Brasil
Segundo o Censo Agropecuário 1995/96, existem no Brasil 4.859.732
estabelecimentos rurais, ocupando uma área de 353,6 milhões de hectares.
Em 1996 o Valor Bruto da Produção (VBP) Agropecuária foi de R$
47,8 bilhões. Destes, 4.139.369 são estabelecimentos familiares,4 ocupando
uma área de 107,8 milhões de ha, sendo responsáveis por R$ 18,1 bilhões
ou 37,9% do VBP total, apesar de receber apenas 25,3% dos financiamentos
agrícolas. Os agricultores patronais, representados por 554.501 estabelecimentos,
ocupavam 240 milhões de ha.
Os agricultores familiares representam 85,2% do total de estabelecimentos,
ocupam 30,5% da área total e são responsáveis por 37,9% do
valor bruto da produção agropecuária nacional. Quando considerado o
valor da renda total agropecuária (RT) de todo o Brasil, os estabelecimen-
3 Especialmente interessante é o potencial da agricultura familiar para a produção agroecológica. Ver, sobre este ponto,
LINHARES, R. A Questão Agroecológica no Brasil . Análise Histórica e Perspectivas. (Tese de Doutoramento) Campinas,
SP: IE/Unicamp, 2002.
4 Ver Guanziroli et al. (2001) para uma apresentação e discussão da metodologia adotada para classificar o estabelecimento
como familiar.
tos familiares respondem por 50,9% do total de R$ 22 bilhões. A participa-
ção dos familiares na renda total agropecuária (RT) é maior do que no VBP,
o que pode ser explicado pelo fato de este último desprezar os gastos de
produção incorridos pelos agricultores. Esse conjunto de informações revela
que os agricultores familiares utilizam os recursos produtivos de forma
mais eficiente que os patronais, pois, mesmo detendo menor proporção
da terra e do financiamento disponível, produzem e empregam mais do
que os patronais.
Os agricultores familiares representam 85,2% do total de estabelecimentos,
ocupam 30,5% da área total e são responsáveis por 37,9% do
valor bruto da produção agropecuária nacional. Quando considerado o
valor da renda total agropecuária (RT) de todo o Brasil, os estabelecimentos
familiares respondem por 50,9% do total de R$ 22 bilhões. A participa-
ção dos familiares na renda total agropecuária (RT) é maior do que no VBP,
o que pode ser explicado pelo fato de este último desprezar os gastos de
produção incorridos pelos agricultores. Esse conjunto de informações revela
que os agricultores familiares utilizam os recursos produtivos de forma
mais eficiente que os patronais, pois, mesmo detendo menor proporção
da terra e do financiamento disponível, produzem e empregam mais do
que os patronais.
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
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Categorias Estab.
Total
% Estab.
s/total
Área Total
(ha)
% Área
s/total
VBP
(R$ mil)
% VBP
s/total
% FT
s/total
Familiar 4.139.369 85,2 107.768.450 30,5 18.117.725 37,9 25,3
Patronal 554.501 11,4 240.042.122 67,9 29.139.850 61,0 73,8
Instit.
Pia/Religiosa 7.143 0,1 262.817 0,1 72.327 0,2 0,1
Entidade
Pública 158.719 3,3 5.529.574 1,6 465.608 1,0 0,8
Total 4.859.732 100,0 353.602.963 100,0 47.795.510 100,0 100,0
Tabela 1. Brasil - estabelecimentos, área e valor bruto da produção
e percentual do financiamento total (ft)
FONTE - Censo Agropecuário 1995/96 . IBGE
Elaboração: Convênio FAO/INCRA
2.1 Diversidade e viabilidade da agricultura familiar
A agricultura familiar é um universo profundamente heterogêneo,
seja em termos de disponibilidade de recursos, acesso ao mercado, capacidade
de geração de renda e acumulação. Esta diversidade é também
regional. A área média dos estabelecimentos familiares é de 26 ha, e o
tamanho médio varia de região para região. Os estabelecimentos da regi
ão Nordeste têm a menor área média (17ha) e os da região Centro-
Oeste a maior (84ha).
A Renda Total (RT) dos agricultores familiares apresenta grande diferen
ça, refletindo tanto diferenças entre estabelecimentos como entre as
regiões do país. A RT por estabelecimento familiar para todo o Brasil, foi de
R$ 2.717,00, resultando em uma média de R$ 104,00 por ha de área total.
Entre os familiares, a RT varia de R$ 1.159,00/ano no Nordeste a R$ 5.152,00
no Sul. Quando se considera a RT por unidade de área, os resultados da
agricultura familiar são muito superiores aos dos estabelecimentos patronais
em todas as regiões do país. No Nordeste a RT é de R$ 70,00/ha entre os
322 SOCIOLOGIAS
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
familiares contra R$ 37,00/ha dos patronais; no Centro-Oeste é de
R$ 48,00/ha contra R$ 25,00/ha dos patronais e na região Sul é de R$
241,00/ha, enquanto a dos patronais não supera R$ 99,00/ha.
Tabela 2. Renda Total (RT) e Renda Monetária (RM) por estabelecimento
(em R$)
Região
Familiar Patronal
RT/Estab RM/Estab RT/Estab RM/Estab
Nordeste 1.159 696 9.891 8.467
Centro-Oeste 4.074 3.043 33.164 30.779
Norte 2.904 1.935 11.883 9.691
Sudeste 3.824 2.703 18.815 15.847
Sul 5.152 3.315 28.158 23.355
Brasil 2.717 1.783 19.085 16.400
FONTE - Censo Agropecuário 1995/96 . IBGE
Elaboração: Convênio FAO/INCRA
A má distribuição da propriedade da terra é o traço mais marcante e,
ao mesmo tempo, a principal distorção da estruturação fundiária no Brasil.
Entre os agricultores familiares, um número significativo é proprietário de
um lote menor que 5 ha, tamanho que, na maior parte do país, dificulta,
senão inviabiliza, a exploração sustentável dos estabelecimentos
agropecuários. Excluindo atividades de subsistência, a sustentabilidade das
pequenas propriedades é crescentemente condicionada pela inserção em
determinadas cadeias produtivas, pela localização econômica e grau de
capitalização.
No Brasil, 39,8% dos estabelecimentos familiares têm menos de 5
ha, 30% têm entre 5 a 20 ha e 17% estão na faixa de 20 e 50 ha. Os
agricultores familiares com área maior que 100 ha e menor que a área
máxima regional representam apenas 5,9% dos estabelecimentos, que
ocupam 44,7% de toda a área da agricultura familiar brasileira.
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
SOCIOLOGIAS 323
Gráfico 1. Brasil: agricultores familiares . percentual de estabelecimentos
e área segundo grupos de área total
39,8
29,6
17,2
7,6
5,9
3,0
12,2
20,4 19,7
44,7
< 5 5 a 20 20 a 50 50 a 100 100 a 15 MR
Em ha
Em %
Estabelecimentos Área
Tabela 3. Agricultores familiares: percentual de estabelecimentos e área
segundo grupos de área total (em ha)
Região
Menos de
5 ha
5 a - de 20
ha 20 a - de 50 ha 50 a - de 100
ha
100 a -de
15 MR
% Estab % Estab. % Estab. % Estab. % Estab.
Nordeste 58,8 21,9 11,0 4,8 3,4
Centro-Oeste 8,7 20,5 27,3 18,8 24,6
Norte 21,3 20,8 22,5 17,9 17,4
Sudeste 25,5 35,6 22,7 9,9 6,3
Sul 20,0 47,9 23,2 5,9 2,9
Brasil 39,8 30,0 17,1 7,6 5,9
FONTE - Censo Agropecuário 1995/96 . IBGE
324 SOCIOLOGIAS
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
A área média dos estabelecimentos familiares em cada grupo de área
também é baixa. No estrato de menos de 5 ha, o tamanho médio dos
estabelecimentos para todo o Brasil é de apenas 1,9 ha. Mesmo entre os
com área entre 5 e 20 ha, a média é de apenas 10,7 ha por estabelecimento.
A região Nordeste é a que apresenta o maior número de minifúndios,
com 58,9% de estabelecimentos familiares no estrato de menos de 5 ha.
Entre estes agricultores, a área média é de 1,7 ha por estabelecimento. Na
região Sul, 20% dos estabelecimentos familiares têm menos de 5 ha, 29,6%
entre 5 e menos de 20 ha e 23,2% entre 20 e menos de 50 ha.
A análise da renda total dos estabelecimentos demonstra que existe
uma grande variabilidade do nível de renda. A renda total da grande maioria
dos estabelecimentos dos agricultores familiares (68,9%) situa-se no intervalo
entre zero e R$ 3.000,00 ao ano. Outros 15,7% possuem renda total
entre R$ 3.000,00 e R$ 8.000,00 e apenas 0,8% têm renda total superior
a R$ 27.500,00 ao ano. Cerca de 8,2% dos estabelecimentos familiares
ocupando 10,8% da área total dos agricultores familiares, apresentaram
renda total negativa.5
5 Estes estabelecimentos são formados por três grandes grupos de agricultores: (i) o primeiro constituído por aqueles que
estão investindo em novas atividades, que demandam gastos e investimentos mas que ainda não estão gerando retorno; (ii)
o segundo é formado por agricultores que tiveram prejuízos na safra em que foi realizado o censo, seja por problemas de
mercado seja por problemas climáticos; (iii) o último grupo é representado por agricultores que produzem muito pouco e
dedicam-se a outras atividades; como a renda gerada pela atividade agropecuária é pequena e os gastos gerais do estabelecimento
são maiores, a renda agropecuária aparece como negativa. Deve-se destacar que os agricultores com renda negativa
que se enquadram nas situações (i) e (ii) não são necessariamente pobres.
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
SOCIOLOGIAS 325
Grupos de área total Área Média (Em ha)
Menos de 5ha 1,9
5 a menos de 20ha 10,7
20 a menos de 50ha 31,0
50 a menos de 100ha 67,8
100 ha a 15 Módulos Regionais 198,0
Área Média dos Agricultores Familiares 26,0
Tabela 4. Brasil - agricultores familiares: área média dos estabelecimentos
segundo os grupos de área total (em ha)
FONTE - Censo Agropecuário 1995/96 . IBGE
Elaboração: Convênio FAO/INCRA
Tabela 5. Agricultura familiar: participação percentual dos estabelecimentos
e área segundo os grupos de renda total (em reais)
Grupo de
RT/Região
Até 0,00
Mais de
0,00 a
3.000
Mais de
3.000 a
8.000
Mais de
8.000
15.000
Mais de
15.000 a
27.500
Mais de
27.500
%
Estab
%
Área
%
Estab
%
Área
%
Estab
%
Área
%
Estab
%
Área
%
Estab
%
Área
%
Estab
%
Área
Nordeste 7,0 8,8 85,7 67,9 5,8 16,5 1,0 4,2 0,3 1,7 0,2 1,0
Centro-Oeste 14,9 18,2 49,4 33,1 23,5 24,5 7,1 11,4 3,1 6,7 2,1 6,0
Norte 5,2 8,5 67,1 54,6 22,2 26,2 4,0 6,8 1,1 2,5 0,5 1,3
Sudeste 14,7 14,7 55,1 38,9 19,6 25,2 6,4 11,2 2,7 5,9 1,6 4,2
Sul 6,6 7,9 44,8 30,0 31,3 31,8 11,6 16,5 4,0 8,3 1,8 5,5
Brasil 8,2 10,8 68,9 48,9 15,7 23,7 4,6 9,1 1,7 4,4 0,8 3,1
FONTE - Censo Agropecuário 1995/96 . IBGE
Elaboração: Convênio FAO/INCRA
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Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
Tabela 6. Agricultura familiar: participação percentual dos estabelecimentos
segundo grupos de renda monetária (em reais)
Região
Total de
Estab.
(número)
Percentual de Estabelecimentos (%)
Até 0 Mais de 0
a 3.000
Mais de
3.000 a
8.000
Mais de
8.000 a
15.000
Mais de
15.000 a
27.500
Mais de
27.500
Nordeste 2.055.157 19,6 76,0 3,3 0,7 0,2 0,1
Centro-Oeste 162.062 23,1 51,0 16,6 5,2 2,3 1,8
Norte 380.895 10,5 72,6 13,4 2,5 0,7 0,4
Sudeste 633.620 24,5 53,9 14,1 4,4 1,9 1,2
Sul 907.635 16,0 53,7 20,2 6,3 2,4 1,3
Brasil 4.139.369 18,9 66,5 10,1 2,8 1,1 0,6
FONTE - Censo Agropecuário 1995/96 . IBGE
Elaboração: Convênio FAO/INCRA
Enquanto 8,2% dos estabelecimentos de agricultores familiares apresentam
renda total negativa, cerca de 19% apresentam renda monetária
negativa. Esta diferença representa basicamente o valor da produção destinada
ao autoconsumo, cujo peso é grande na agricultura familiar. Muitos
desses agricultores, em especial os mais descapitalizados, lançam mão de
rendas não-agrícolas para investir em seus estabelecimentos. A renda monet
ária obtida pode ser inferior ao valor gasto (renda monetária negativa),
mas a produção para o autoconsumo pode compensar a despesa.
Este conjunto de informações confirma que o universo dos agricultores
familiares é extremamente diferenciado e que, enquanto uma parte
dos estabelecimentos gera um nível de renda sustentável, outra parte enfrenta
crescentes dificuldades associadas principalmente à falta de recursos,
principalmente terra e capital.
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
SOCIOLOGIAS 327
2.2 Sistemas de produção da agricultura familiar:
potencialidades e obstáculos
Ao longo do período 1994-98, o Convênio FAO/INCRA realizou uma
série de estudos sobre os sistemas de produção adotados pelos agricultores
familiares nas diversas regiões do país. O objetivo desses estudos foi aprofundar
o conhecimento sobre alguns aspectos do funcionamento da agricultura familiar,
identificar os obstáculos enfrentados, assim como as potencialidades associadas
aos principais sistemas de produção utilizados pelos agricultores familiares
nas várias regiões do país. Os resultados representam uma fotografia acurada
da situação e das potencialidades da agricultura familiar no Brasil. A seguir
apresentam-se as principais conclusões, destacando os aspectos relacionados
ao tema da resistência e viabilidade da agricultura familiar.
Os estudos confirmam que, em todas as regiões, a agricultura familiar
explora de forma intensiva os recursos escassos disponíveis e que é poss
ível gerar níveis de renda agropecuária superior ao nível de reprodução
da família. Naturalmente que nem sempre este potencial se realiza, seja
em razão das severas restrições de recursos enfrentados pelos agricultores
familiares particularmente na Região Nordeste, seja por causa das condi-
ções macroeconômicas negativas e da ausência/deficiências das políticas
públicas que deveriam, pelo menos, contrabalançar os efeitos negativos
das políticas e da conjuntura macroeconômica.
Em praticamente todos os sistemas e regiões, os agricultores enfrentam
problemas associados à disponibilidade de capital de giro e recursos
para investimentos. Ao contrário do que é comumente divulgado, parte da
agricultura familiar maneja sistemas produtivos modernos que utilizam intensivamente
os insumos adquiridos no mercado e carregam custos elevados
de manutenção/depreciação de equipamentos/instalações. Apesar da
estratégia de combinar atividades com prazos de maturação e fluxos de
despesas e receitas diferentes visando reduzir o risco e a dependência de
capital de giro de terceiros, é equivocada a visão da produção familiar
328 SOCIOLOGIAS
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
como auto-suficiente e totalmente avessa ao risco envolvido nas opera-
ções financeiras. Na prática, a grande maioria dos produtores necessita de
recursos de terceiros para operar suas unidades de maneira mais eficaz,
rentável e sustentável. A ausência desses recursos, seja pela insuficiência
da oferta de crédito, seja por causa das condições contratuais inadequadas,
impõe sérias restrições ao funcionamento da agricultura familiar mais
moderna e, principalmente, a sua capacidade de manter-se competitiva
em um mercado cada vez mais agressivo e exigente.
Essa mesma restrição também afeta um grande número de produtores
que exploram sistemas potencialmente viáveis, mas que não logram
alcançar, a partir da renda gerada pela unidade produtiva, o patamar mínimo
de capitalização necessário para viabilizar suas unidades de produção.
Independentemente da potencialidade dos sistemas adotados e de disporem
de um conjunto relevante de recursos necessários para operar uma
unidade viável, a insuficiência de apenas 1 insumo chave, como é o caso
do capital-dinheiro, empurra uma massa de produtores para um círculo
vicioso, cujo resultado é quase sempre a reprodução do ciclo da pobreza:
renda insuficiente dado o baixo nível de capitalização (baixo em relação
ao patamar que permite competir e acumular e não necessariamente em
termos absolutos), incapacidade de acumulação, empobrecimento... Em
ambos os casos, bastaria facilitar o acesso dos agricultores familiares ao
recurso marginal escasso, para viabilizar a exploração sustentável de muitos
sistemas de produção em todas as regiões do País e elevar o nível de
renda de, pelo menos, uma parcela de famílias pobres que vivem no meio
rural e tem na exploração da terra sua principal fonte de sobrevivência.
A agricultura familiar enfrenta ainda restrições de acesso aos mercados
de serviços em geral, e não apenas ao crédito. Com exceção dos Estados
da Região Sul onde a agricultura familiar tem densidade suficiente
para aparecer como a forma de exploração dominante em muitos municí-
pios, nas demais regiões, os produtores familiares aparecem em geral isolados
em pequenos grupos em meio à exploração patronal dominante.
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
SOCIOLOGIAS 329
Esta dispersão dificultou o florescimento de prestadores de serviços técnicos
especializados, assim como o baixo nível de acumulação e a exclusão
dos agricultores familiares da política de crédito subsidiada nos anos 70 e
80, além de não ter estimulado o surgimento de uma indústria produtora
de equipamentos dimensionados para as condições e necessidades da agricultura
familiar. No Nordeste, apesar do adensamento, o nível de acumula
ção é baixo, a maioria dos agricultores familiares é pobre e não se constitui
em mercado relevante a ponto de estimular o desenvolvimento de
empresas prestadoras de serviços técnicos específicos para o setor familiar.
Se, no passado, esta carência não impedia de progredir os agricultores
familiares que exploravam sistemas conhecidos e estáveis, no presente, ela
se tornou um grave obstáculo. O ritmo das mudanças técnicas e
tecnológicas, assim como a necessidade de introduzir novas atividades e
de adaptar sistemas de produção tradicionais às exigências do mercado
superam, de longe, tanto o conhecimento como o tempo de aprendizado
autônomo dos agricultores. Assistência técnica, extensão, serviços de
meteorologia, comercialização, etc. são fundamentais para a viabilidade
dos sistemas mais avançados, e sua ausência e/ou deficiência restringe o
desenvolvimento e consolidação de sistemas produtivos nos quais os agricultores
familiares poderiam ser competitivos e viáveis.
Finalmente cabe mencionar que historicamente a agricultura familiar
enfrentou um quadro macroeconômico adverso, caracterizado pela instabilidade
monetária e inflação elevada (sem condições de fazer hedge), discrimina
ção negativa da política agrícola que favorecia os produtores patronais,
política comercial e cambial desfavorável e deficiência dos serviços
públicos de apoio ao desenvolvimento rural. Na realidade, ao invés de
promover o desenvolvimento rural e local, o conjunto de políticas públicas
promoveu o esvaziamento do campo e inibiu o desenvolvimento local, em
favor das grandes metrópoles e cidades médias.
A tabela 7 resume os principais trunfos, potencialidades e obstáculos
de alguns dos sistemas de produção estudados, segundo o nível de capita330
SOCIOLOGIAS
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
lização dos produtores familiares. Na verdade, a maioria dos sistemas enfrenta,
com diferente intensidade, uma ou mais das restrições e pontos de
estrangulamentos listados acima. Alguns aparecem de forma recorrente
em produtores do mesmo nível de capitalização, que exploram sistemas
de produção completamente diferentes, sugerindo tratar-se de problemas
derivados mais da categoria do produtor que dos sistemas produtivos propriamente
ditos. Nesta classe de estrangulamento, pode-se mencionar a
necessidade de recursos para investimentos. Esta restrição é maior entre os
familiares capitalizados, que exploram sistemas altamente intensivos em
insumos industriais, com auxílio de máquinas e instalações custosas. Tratase
de sistemas inseridos em mercados altamente competitivos e dinâmicos,
que exigem dos produtores um processo quase contínuo de atualiza-
ção, adaptação e, até mesmo, de mudanças mais significativas.
Principais Sistemas Categorias de
Agricultor
Triunfos e
Perspectiva
Pontos de
Estrangulamento
1. Milho, Aves, Suínos,
Feijão Capitalizados Renda Mensal Integração
com Agroindústria
Exige investimentos
constantes
Supõe área grande
Exige muita mão-deobra
2. Milho, Leite, Suínos,
Feijão,Pecuária bovina de
Corte
Capitalizados
Redução de risco pela
diversificação
Renda Mensal
Adubação orgânica
do milho
Recursos do feijão na
entressafra é o sistema
mais estável
Exige inovação técnica
permanente
Armazenagem do milho
Qualidade do manejo do
gado
Padrão genético do gado
leiteiro
Baixa produção de leite
3. Milho, Feijão, Suí-nos,
Aves Leite, Pecuária
bovina de corte
Capitalizados Muito rentável Exige altos investimentos
Muita mão-de-obra
4. Milho, Feijão Em Transição
Exige pouco capital
Compatível com outras
atividades
Consumo da família e
criação de pequeno porte
Pouco valor agregado
Exige maior área
Preços instáveis
Sistema em declínio
Tabela 7. Problemas e potencialidades
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
SOCIOLOGIAS 331
Principais Sistemas Categorias de
Agricultores
Triunfos e
Perspectivas
Pontos de
Estrangulamento
5. Milho, Feijão, Suínos Em Transição
Utilização de esterco
na lavoura
Renda Mensal
Condomínios
6. Milho, Feijão, Suínos,
horticultura e/ou leite Em Transição Crescimento dos
Mercados Urbanos
Escassez de mão-deobra
Horticultura
7. Milho, Feijão,
horticultura Em Transição
Alternativa de
diversificação recente
Grupos de mão-deobra
Supõe experiência
gastos com estufas
Exige conhecimento de
mercado
8. Milho, Feijão, Fumo,
Leite Em Transição
Fumo garante renda
Acesso a crédito
Uso de adubos para
outras culturas
Valorização patrimonial
e diversificação
Trabalho no leite
compatível com o fumo
Agrotóxicos
Demanda concentrada
de mão-de-obra
9. Milho, Feijão, Leite Em Transição
Sistema mais acessível,
viável com pouco
capital
Recursos para
investimentos em
melhoria genética
Necessidade de mais
terra
Alguns sistemas enfrentam problemas de mão-de-obra, cuja disponibilidade
limita sua evolução. De uma maneira geral, esta restrição está
associada a quatro fatores: intensificação do uso do fator trabalho à medida
que os sistemas se tornam mais complexos e integrados aos mercados
agroindustriais; tamanho da família e da mão-de-obra familiar disponível;
tecnologia inadequada para as necessidades da agricultura familiar e/ou
inviável economicamente; falhas no mercado de trabalho local.
Neste campo, a agricultura familiar enfrenta uma contradição: de um
lado, a viabilidade e rentabilidade passam, em grande medida, pela estraté-
gia de reduzir riscos por meio da diversificação, potencializar a produtividacontinua
ção
332 SOCIOLOGIAS
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
de da mão-de-obra familiar por meio da tecnificação e incorporação de
insumos industriais e buscar segmentos de mercado de alto valor agregado,
nos quais possam ser obtidas algumas vantagens associadas à própria organiza
ção da produção familiar. Vale destacar o menor custo de gestão e supervis
ão da mão-de-obra familiar; a redução do custo operacional associado à
utilização do trabalhador familiar, que tem incentivos diretos para evitar o
desperdício, etc.; produtividade mais elevada alcançada pela mão-de-obra
familiar em tarefas de manuseio e atenção delicados, quando comparada ao
trabalho assalariado e, finalmente, a maior qualidade do produto obtido sob
os cuidados dos próprios interessados. De outro lado, é notório que tanto o
tamanho das famílias rurais como da mão-de-obra familiar tende a diminuir.
Nas áreas mais desenvolvidas, o esvaziamento é associado às novas e melhores
oportunidades oferecidas aos filhos dos agricultores nos centros urbanos,
ou à falta de desenvolvimento local, em particular no meio rural. Na
camada de produtores familiares mais prósperos, é comum que os filhos
sejam enviados às cidades para estudar, contribuindo para reduzir a disponibilidade
de mão-de-obra. Nas áreas mais pobres e menos dinâmicas, a redu
ção da mão-de-obra está associada aos tradicionais fatores de expulsão.
A escassez de mão-de-obra é parcialmente compensada pela eleva-
ção da produtividade e pela utilização de mão-de-obra assalariada tempor
ária, o que exige maior volume de investimentos . outra restrição já apontada
acima . e reduz as vantagens próprias da produção familiar. Em muitos
casos, os investimentos não são feitos por não compensarem economicamente,
ou pela falta de segurança para investir em projetos que requerem
alguns anos de depreciação. Embora relevante, este problema não
compromete estruturalmente a competitividade e viabilidade da agricultura
familiar, mas sua superação exige a implementação de um conjunto de
políticas, em particular tecnológicas, especificamente desenhadas com o
objetivo de superar este gargalo.
Muitos sistemas são negativamente afetados pela baixa produtividade,
que em muitas situações os inviabiliza. Outros sistemas enfrentam resSociologias,
Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
SOCIOLOGIAS 333
trições associadas ao tamanho do estabelecimento. Outros, devido à degrada
ção dos solos e ambiental em geral, provocada pelo encurtamento
do tempo de descanso da terra e pela adoção de práticas insustentáveis
devido à falta de recursos e nível de pobreza. Nestes casos, caberia perguntar
que razões levam os produtores a adotar sistemas possivelmente
insustentáveis e aparentemente incompatíveis com a dotação de recursos.
O argumento central é que eles adotam sistemas possíveis e viáveis (nas
condições reais que enfrentam) que melhor respondem ao conjunto de
restrições enfrentadas em cada momento, não havendo nenhuma garantia
(claim) de que todos os sistemas sejam eficientes do ponto de vista macro
nem sustentáveis no longo prazo. Que atividades, além da pecuária extensiva
e da roça/capoeira, pode desenvolver um produtor perdido no Estado
do Pará, com acesso precário aos mercados locais pouco estruturados, que
dispõe de uma pequena parcela de terra e quase nenhum dinheiro? Mesmo
não sendo rentável pela contabilidade empresarial e ou sustentável
socialmente, pode ser sua melhor e, não raramente, única opção.
A instabilidade dos mercados e dos preços no nível do produtor também
é um ponto de estrangulamento importante, em particular para os sistemas
que exigem investimento significativo (pelo menos em relação à capacidade
dos agricultores), incorrem em custos operacionais elevados e não estão inseridos
contratualmente na cadeia agroindustrial. Em geral, os agricultores familiares
enfrentam, em condições de relativa desvantagem, a concorrência de
produtos importados e/ou de grandes produtores que se beneficiaram de subs
ídios no passado e que ainda hoje têm acesso privilegiado aos serviços e
canais de comercialização. Em muitos casos, esta inserção privilegiada chega a
anular as eventuais vantagens competitivas da agricultura familiar, advindas,
como já foi mencionado, da redução dos custos de transação, do menor custo
de gestão da mão-de-obra em relação ao trabalho assalariado em atividades
intensivas em trabalho e em atenção, e da produtividade mais elevada do
trabalho familiar. Operando com margens líquidas reduzidas, espremidos en334
SOCIOLOGIAS
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
tre os fornecedores de insumos em mercados incompletos e com poucas op-
ções para vender sua produção, esses sistemas são sensíveis às quedas dos
preços e flutuações dos mercados agrícolas.
A tabela 7 também resume os .trunfos e perspectivas. comuns a vários
sistemas encontrados de norte a sul do país. Em alguns casos, os trunfos decorrem
mais da própria natureza da produção familiar que do sistema em si
mesmo. Por exemplo: já se comentou que o produtor familiar procura diversificar
sua produção. Embora em sua origem a diversificação fosse determinada
pelo caráter de subsistência da produção familiar, hoje é uma clara e consciente
estratégia de redução de riscos e incerteza, sem dúvida um trunfo de
muitos sistemas de produção explorados por produtores familiares.
Em outros casos, a potencialidade decorre do próprio sistema, como
por exemplo a possibilidade e viabilidade de utilizar a adubação orgânica
de modo mais significativo, aumentando o valor agregado total produzido
pelo sistema. A adubação orgânica vem crescendo em muitas regiões do
país, sendo especialmente aplicada a produtos que exigem cuidado e mãode-
obra intensivos, exatamente aqueles segmentos nos quais a agricultura
familiar tem maiores vantagens para competir com os agricultores patronais.
A crescente demanda por produtos orgânicos abre, portanto, novas possibilidades
de expansão e geração da renda para os produtores familiares.
Em outros casos, a viabilidade, sustentabilidade e perspectiva de
muitos sistemas assentam-se precisamente na baixa exigência de capital
fixo e no baixo nível de investimentos, características que a análise tradicional
insiste em ver apenas pelo lado do .atraso.. Inseridos em contextos
fortemente instáveis e em mercados com baixo nível de eficiência, em
muitas regiões um dos grandes trunfos de vários sistemas é o baixo nível de
capitalização e de gastos com insumos industriais. Tal característica reduz a
dependência de insumos e serviços raramente disponíveis nos mercados
locais a preços e condições compatíveis com o nível de capitalização dos
agricultores, reduz o custo de produção e o risco, elevando, portanto, a
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
SOCIOLOGIAS 335
viabilidade e sustentabilidade dos sistemas. Naturalmente que essa situa-
ção não é estática, e o grande desafio é apoiar a agricultura familiar para
que a mesma possa responder e adequar-se, de forma consistente, às
mudanças do contexto econômico e institucional.
A tabela 8 confirma que a renda agropecuária gerada pelos agricultores
familiares varia sensivelmente de região para região, entre os sistemas
produtivos adotados e o grau de capitalização dos agricultores. No entanto,
a análise das informações indica que, em muitos casos, a renda
agropecuária dos agricultores familiares é superior ao custo de oportunidade
da mão-de-obra familiar. Mais do que isto, mesmo nos casos em que o
nível de renda gerado é baixo e insuficiente para elevar o nível de vida das
famílias acima do patamar da pobreza e assegurar a reprodução sustentada
da unidade produtiva, os produtores familiares auferem renda superior
ao da população pobre local.
O autoconsumo também varia intensamente entre os sistemas produtivos
e o nível de capitalização, mas, mesmo entre os produtores mais
capitalizados da Região Sul, o consumo da família corresponde a quase
20% do produto gerado pela unidade produtiva. Em algumas áreas do
Norte e Nordeste, este percentual é consideravelmente mais elevado, refletindo
não apenas a precariedade dos meios à disposição do agricultor,
mas também, e principalmente, seu isolamento e distância dos mercados.
Entre os agricultores familiares descapitalizados são freqüentes os casos
de renda monetária agrícola negativa. A forte presença de rendas monetá-
rias externas nesta categoria, representando às vezes até 80% da renda
monetária total da família, contra aproximadamente 25% entre os agricultores
familiares em transição e menos de 5% entre os capitalizados, demonstra
a necessidade de busca de outras rendas para garantir a sobreviv
ência da família. Essas rendas são oriundas principalmente de aposentadorias,
pensões, serviços públicos (servente de escola, professora, motorista)
e venda de mão-de-obra em atividades agrícolas. A aposentadoria, prin336
SOCIOLOGIAS
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
Regiões Sistemas de
Produção
Renda Agropecuária
Mínima Média Máxima
N
O
R
T
E
Raça Pura 2.320,00(1)
Raça + Pecuária
Bovina 1.969,00 (2) 4.800,00(1)
Raça + 1 cultura
perene 3.798,00 (1)
Raça+ 2 culturas
perenes 9.228,00 (1)
Raça + Pecuária
bovina + cultura
perene
4.812,00(1 13.900,00(1)
Raça + Pecuária
bovina + café 4.288,00 ((2)
Raça + Pecuária
bovina + cacau 7.310,00 (2) 7.920,00(2)
Raça+ Pecuária
bovina + cacau +
café
4.574,00(2)
Pecuária Extensiva 5.684,00 (2) 26.000,00 (1)
S
U
D
E
S
T
E
Cana-de-açúcar,
feijão, abóbora, horta,
aipim, pomar
76.716,00
Cana-de-açúcar,
milho, feijão, aipim,
maracujá, abacaxi,
pecuária, pomar
72.696,00
Guando, aves,
mandioca, milho,
feijão, pomar,
pecuária
15.348,00
Horta, suínos, pomar,
banana e cana-dea
çúcar
19.464,00
Tabela 8. Renda agropecuária dos principais sistemas de produção típicos
da agricultura familiar por região
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
SOCIOLOGIAS 337
Regiões Sistemas de
Produção
Renda Agropecuária
Mínima Média Máxima
S
U
D
E
S
T
E
Pecuária bovina
leiteira + culturas
anuais (arroz, feijão e
milho) + quintal
33.078,00 63.906,00
Pecuária bovina de
corte + culturas
anuais (arroz, feijão e
milho) + cana-dea
çúcar + quintal
8.100,00 36.108,00
Pecuária bovina
leiteira + culturas
anuais (arroz, feijão e
milho) + culturas
permanentes (laranja,
seringueira e café) +
quintal
33.078,00 72.030,00
cuária bovina de corte
+ culturas anuais
(feijão e milho),
hortículas (jiló,
abóbora, abóbora
menina, pimentão e
tomate)
65.202,00
Mandioca, culturas
anuais (arroz, feijão e
milho) + quintal +
Pecuária bovina
leiteira
11.340,00
continuação
338 SOCIOLOGIAS
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
Regiões Sistemas de
Produção
Renda Agropecuária
Mínima Média Máxima
C
E
N
T
R
O
-
O
E
S
T
E
Culturas de
Subsistência (arroz,
feijão, milho e
mandioca)
1.633,00 2.170,30
Culturas de
Subsistência +
Banana (Borracha) +
Pecuária Bovina Mista
8.822,90 51.800,30
Culturas de
Subsistência (arroz,
feijão, milho e
mandioca) +
Hortigranjeiros
8.882,80 9.922,80
Culturas de
Subsistência (arroz,
feijão e milho e
mandioca) + Pecuária
de Leite
7.870,10 12.945,30
Culturas de Subsist
ência + Pecuária
Bovina de cria
4.683,00
Soja + milho e Feijão 3.230,70 29.515,30
S
U
L
Autoconsumo 1.388,00(d) 1.458,00(d)
Milho +
Autoconsumo 2.856,00 (d) 5.354,00(f)
Fumo + Autoconsumo 3.639,00(f)
Milho + Criações 4.060,00(f)
Soja e Aveia + Milho 5.609,00(f)
Soja, Aveia e Trigo +
Milho 20.945,00 (c)
Soja, Aveia e Trigo +
Suínos 15.622,00 (f)
continuação
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
SOCIOLOGIAS 339
3. Indicações para a formulação de uma estratégia para o
desenvolvimento e fortalecimento da agricultura familiar
A agricultura familiar respondia por 38,9 % do PIB agrícola do Brasil,
mas apenas 16% dos agricultores familiares tinham assistência técnica; em
1996, 38 % dos mesmos tinham uma área inferior a 5 ha, 50 % usavam
tecnologia manual e apenas 25% usavam trator. Ou seja, havia limitações
tanto na disponibilidade de terra como de tecnologia e de financiamento,
que impediam um melhor desempenho desse segmento dentro do contexto
da agricultura do país.
Para enfrentar essa situação, não é possível continuar com a política
de apagar incêndios via assentamentos de reforma agrária e de apoio localizado
à agricultura familiar, é necessária uma série muito mais ampla e
diversa de políticas, que inclui desde o agrícola até educação. Não se trata
aqui de propor, de forma detalhada, políticas específicas de apoio à produ
ção familiar, mas tão somente de, com base na análise das políticas
adotadas no passado, recomendar as linhas gerais que poderão orientar a
definição de uma estratégia e a formulação de políticas com o objetivo de
fortalecer e estimular o desenvolvimento da agricultura familiar no Brasil.
O desempenho da agricultura familiar reflete um conjunto amplo de
condicionantes, desde a disponibilidade de recursos, a inserção
socioeconômica, a localização geográfica, as oportunidades e a conjuntura
econômica, as instituições e valores culturais da família, do grupo social e
até mesmo do país. Apesar da importância desses fatores, pode-se considerar,
com certo grau de simplificação, que os quatro principais
condicionantes do desenvolvimento rural são os incentivos que os produtores
têm para investir e produzir, a disponibilidade de recursos, particularmente
terras, água, mão-de-obra, capital e tecnologia, que determinam
o potencial de produção, o acesso aos mercados, insumos, informações e
serviços que influem de forma decisiva na capacidade efetiva de produção
340 SOCIOLOGIAS
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
e, finalmente, as instituições, que influenciam as decisões dos agentes e
inclusive sua capacidade, possibilidade e disposição para produzir. Desta
maneira, qualquer política de desenvolvimento e promoção da agricultura
familiar deve necessariamente levar em conta a situação desses quatro
fatores e sua influência sobre a dinâmica da produção familiar.6
Essas considerações iniciais têm o objetivo de mostrar que a promo-
ção da agricultura familiar não pode ser concebida e enfrentada a partir de
políticas e instrumentos isolados como vem ocorrendo no Brasil. É preciso,
portanto, ter uma visão global do problema e reconhecer que, dada sua
dimensão, não se trata apenas de integrar organicamente as políticas espec
íficas de apoio à agricultura familiar à política macroeconômica e às polí-
ticas setoriais; ao contrário, trata-se de definir uma estratégia de desenvolvimento
nacional, políticas macroeconômicas e setoriais compatíveis com
a proposta de estimular um padrão de crescimento econômico com eqüidade
social, fortalecer as iniciativas individuais da pequena e média empresa
urbana, a agricultura familiar, gerar empregos urbanos e rurais, reduzir
a pobreza, etc.
É necessário que as chamadas políticas sociais deixem de ser apenas
compensatórias como no passado, quando eram concebidas para reduzir
os efeitos negativos de estratégias e políticas macroeconômicas e setoriais
que não conduziam aos objetivos de desenvolvimento com eqüidade. A
abordagem da política compensatória equivale a tentar manter o nível da
represa apenas através do controle da vazão de água, que, no entanto, é
muito inferior à vazão do próprio riacho.
Independentemente de erros de desenho e implementação dessas
políticas . que muitas vezes privilegiaram os efeitos e sintomas e não as
causas reais dos problemas ., é forçoso reconhecer que políticas específicas
e localizadas não são eficazes para combater problemas abrangentes.
6 Por exemplo, poderia ser inútil desenhar uma política que melhorasse os incentivos (preços reais), sem resolver pontos de
estrangulamento na dotação de recursos (terra insuficiente, falta de água nas regiões semi-áridas), problemas de acesso a
insumos básicos ou mercados eficientes ou ainda problemas institucionais como a falta de titulação da terra ou informações
deficientes.
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 312-347
SOCIOLOGIAS 341
Se fracassaram no passado quando a disponibilidade de recursos e a capacidade
de intervenção do setor público era muito maior do que atualmente,
não há por que considerar que possam ter êxito no presente, quando o
Estado dispõe de menos recursos e enfrenta talvez maiores pressões e desafios.
É necessário, portanto, que a política de desenvolvimento nacional
e setorial sejam apropriadas e conducentes aos objetivos de desenvolvimento
da agricultura familiar, criação de emprego, redução da pobreza,
etc. Sem isso, qualquer política específica estará fadada ao fracasso.
O fortalecimento e desenvolvimento da agricultura familiar requer,
pois, a integração das políticas macroeconômica, agrícola e de desenvolvimento
rural, de forma a reduzir os atritos e aumentar a convergência e
sinergia entre os diversos níveis de intervenção do setor público. Em rela-
ção à política macroeconômica, cabe aqui apenas pontuar que ela incide
diretamente sobre os incentivos e a disponibilidade de recursos. Os pre-
ços reais, o grau de proteção efetiva, a disponibilidade de recursos e o
custo de oportunidade para a utilização desses recursos são fortemente
influenciados pelas políticas e preços macroeconômicos. Além disso, essas
políticas afetam também as variáveis estruturais como a dinâmica da oferta
e demanda, a distribuição de renda e a disponibilidade e qualidade da
infra-estrutura.
Em relação à política setorial, mesmo correndo o risco de simplificar
demasiadamente o problema, pode-se indicar que seus principais objetivos
deveriam ser dois: (i) assegurar condições gerais favoráveis ao desenvolvimento
do setor, removendo os pontos de estrangulamento específicos,
falhas de mercado, precariedade institucional e contribuindo para
equacionar os problemas decorrentes das particularidades da atividade
agropecuária, tais como risco mais elevado, tecnologia apropriada, desenvolvimento
de mercados, informações, etc. A vantagem desta orientação é
não ser excludente, pois, ao deslocar seu foco de intervenção do nível
micro e de cultivos específicos para os condicionantes gerais . particular342
SOCIOLOGIAS
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mente os quatro fatores básicos mencionados acima ., o conjunto dos
produtores pode beneficiar-se, ainda que de forma diferenciada. Fundamentalmente
a política agrícola deve melhorar, para o conjunto dos produtores
e não apenas para alguns, os incentivos, o acesso, a disponibilidade
e as instituições; (ii) promover o fortalecimento e desenvolvimento da
agricultura familiar como eixo central de uma estratégia de redução da
pobreza urbana e rural, geral de empregos rurais e urbanos, distribuição
de renda e fortalecimento das economias regionais e do mercado interno.
A eleição desta prioridade requer a mobilização de um conjunto de instrumentos
que contribua para criar condições básicas e um contexto favorá-
vel ao desenvolvimento da agricultura familiar, assim como para remover
obstáculos particulares que vêm dificultando este processo.
Em relação propriamente às políticas agrícolas, é preciso reconhecer
que, no passado, seus diversos instrumentos foram manejados em função
de objetivos compensatórios, direcionados a um produto ou grupo de produtos.
Dentro do marco conceitual que estamos propondo, é preciso destacar
que políticas que afetam todo o setor devem ser manejados para
criar condições gerais favoráveis para o setor agropecuário, e não para um
ou outro produto, um ou outro produtor. No contexto de uma política
agropecuária consistente e conducente ao desenvolvimento setorial, o apoio
particular a determinados produtos ou grupos de produtores deve plasmar-
se em programas específicos, como o Pronaf, e não no manejo dos
instrumentos gerais da política agrícola. A utilização desses instrumentos
em benefício de um ou outro produto ou grupo de produtor, mesmo quando
bem sucedido, termina por introduzir distorções que, em geral, afetam
negativamente a grande maioria dos demais produtores que ficaram fora
do esquema, em particular os familiares que têm mais dificuldade para
acessar as políticas oficiais. A própria experiência brasileira está cheia de
exemplos de como os interesses da grande maioria dos produtores é afetada
negativamente pela opção de defender a renda ou a situação de um
grupo pequeno de agricultores.
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As atuais propostas de política agrícola já estão incorporando esta
concepção, que representa uma mudança considerável em relação ao padr
ão de intervenção do passado. As intervenções localizadas em favor de
produtos deverão ser substituídas por políticas horizontais que beneficiam
o conjunto do setor e por políticas específicas em favor dos setores mais
debilitados como os agricultores familiares e assentados.
Nesse sentido, as políticas de financiamento com juros ou condições
especiais para este ou aquele produto deverão dar lugar a um esquema de
financiamento mais neutro entre produtos e com possibilidade de alcançar
um maior número de produtores; dentro dessa concepção, no lugar de
subsidiar as taxas de juros e tentar assegurar, através de regulamentações e
medidas administrativas, o acesso dos produtores familiares e pequenos
agricultores aos recursos, poderia ser mais eficaz atuar no sentido de anular
as conhecidas desvantagens que estes produtores enfrentam para obter
financiamento. Várias ações poderiam ser realizadas neste sentido, desde
cobrir os custos de transação mais elevados dos produtores familiares; desenvolver
fundos de aval para reduzir o risco e resolver o problema das
garantias; desburocratizar as regulamentações para o funcionamento de
caixas de poupança e para o crédito coletivo.
As políticas de sustentação de alguns preços devem ser substituídas,
ou complementadas, por políticas de preços para facilitar o acesso aos
mercados e para desenvolver os mercados através de geração e difusão de
informações, desenvolvimento de infra-estrutura de comercialização, promo
ção da descentralização das agroindústrias, renovação da legislação sobre
comercialização, democratização do sistema de transportes. Especial ênfase
deverá ser dada ao desenvolvimento de infra-estrutura, ao refinamento
do zoneamento agropecuário como instrumento para orientar a alocação
mais eficiente e sustentável dos recursos, ao desenvolvimento de tecnologias
agropecuárias e à modernização do marco legal que condiciona o desenvolvimento
do setor.
344 SOCIOLOGIAS
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Também são particularmente relevantes as políticas de educação rural
e de desenvolvimento agroindustrial. Em relação a esta última, cabe
notar que o Brasil não conta com uma institucionalidade adequada para
esse fim, já que o corte tradicional por setores retalha a agroindústria entre
muitos ministérios e instituições. Apesar disso, o fortalecimento da
agroindústria e sua descentralização são fundamentais para o desenvolvimento
da agricultura e do chamado mundo rural, assim como para a gera-
ção de empregos rurais não-agrícola.
É necessário reforçar e melhorar os resultados das políticas agrárias,
cuja implementação deve apoiar-se em diagnósticos regionais e instrumentos
de planejamento participativo. Em um país como o Brasil, é imposs
ível ignorar as diferenças regionais e especificidades locais. É de fundamental
importância conhecer as potencialidades e o desenvolvimento
local, buscando soluções locais concertadas com os agentes relevantes.
Estes diagnósticos evidenciam a enorme heterogeneidade de problemas e
a enorme variação de políticas a serem aplicadas. Em algumas partes, o
problema é a terra, mas em outros, a educação, tecnologia, água, institui-
ções, etc. ocupam um lugar predominante.
Esses diagnósticos permitem a definição de políticas diferenciadas
em favor dos agricultores familiares. Em primeiro lugar, é preciso indicar
que as políticas devem ser desenhadas a partir de diagnósticos precisos
sobre a situação da agricultura familiar, identificando o meio físico, os principais
sistemas de produção, a potencialidade da região e dos sistemas de
produção dominantes, a disponibidade de infra-estrutura, as instituições
locais relevantes para a agricultura familiar, para os pontos de estrangulamentos
econômicos, políticos e institucionais, além de informações sobre
a tipologia dos produtores.
A partir desses diagnósticos que podem ser preparados com o auxílio
de alguns dos métodos de elaboração rápida de diagnósticos, a política
diferenciada deve ter como objetivo a superação dos pontos de estranguSociologias,
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lamento identificados e a criação de condições que possibilitem à agricultura
familiar superar suas eventuais debilidades, qualificando-as assim para
ganhar competitividade e enfrentar o mercado, sem restrições. Portanto, a
política diferenciada está orientada para a .emancipação. dos seus
beneficiários e não deve ser desenhada como política compensatória que,
em geral, não remove as deficiências estruturais e tende a ser necessária
indefinidamente.
Cumpre fortalecer os espaços institucionais de negociação como, por
exemplo, os diferentes conselhos municipais, em particular o conselho
municipal de desenvolvimento rural, para garantir a participação efetiva
das comunidades locais na definição de prioridades para o desenvolvimento
municipal ou pode ser necessário, também, criar novos espaços de
negociação ou de articulação, a partir da percepção que problemas comuns
a vários municípios de uma mesma microrregião podem ser negociados
e solucionados mais facilmente de forma conjunta. Neste sentido, o
próprio Imposto Territorial Rural (ITR) poderia passar à esfera municipal.
Um aspecto importante a ser ressaltado é que não é possível pensar
no fortalecimento da agricultura familiar e no desenvolvimento rural como
.ilhas sociais. em meio a um mar de grandes unidades monocultoras, geradoras
de poucos postos de trabalho, concentradora de renda e riqueza,
etc. A experiência dos países avançados, nos quais a agricultura familiar é
forte, demonstra que seu desenvolvimento requer uma certa concentra-
ção em espaços geográficos bem definidos. Aqui mesmo no Brasil, a agricultura
familiar é forte onde é dominante, ou, pelo menos, expressiva.
Poder-se-ia inverter e afirmar que ela é dominante porque é forte, e acabar
íamos na discussão do ovo e da galinha.
A concentração geográfica de agricultores familiares não é importante
apenas para o desenvolvimento das associações e dos elementos culturais
. solidariedade comunitária, troca de favores, relações familiares, etc.
. que são característicos às comunidades nas quais a presença desses agri346
SOCIOLOGIAS
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cultores é numericamente relevante. O desenvolvimento da agricultura
familiar moderna requer o apoio de um conjunto de serviços técnicos
especializados, além de equipamentos apropriados à sua escala e sistemas
de produção. Dificilmente esses serviços se desenvolvem de forma eficiente
com base em meia dúzia de clientes, espalhados pelo município ou
microrregião; como a própria experiência recente dos assentamentos no
Brasil vem demonstrando, os projetos maiores vêm provocando impactos
positivos na comunidade local, desencadeando um conjunto de iniciativas
que se reforçam e se alimentam, de tal maneira que o saldo final tem sido
muito maior e mais abrangente do que o emprego e renda gerados no
interior dos assentamentos. Em resumo, a existência de uma massa crítica
mínima de agricultores familiares coloca-se como condição fundamental
para o desenvolvimento das formas associativas, dos serviços de apoio necess
ários ao seu fortalecimento e para produzir sinergia com outras iniciativas,
funcionando como um estopim para o desenvolvimento local, sem o
que, dificilmente o próprio crescimento da agricultura familiar é sustentável.
Finalmente, à guisa de conclusão, devemos esclarecer que a necessidade
desta massa crítica não significa que a agricultura familiar não possa
conviver com outras formas de organização da produção. Ao contrário, a
experiência dos países avançados indica que os agricultores familiares são
excelentes vizinhos e que sua presença contribui também para o desenvolvimento
eficiente das empresas capitalistas e unidades patronais. O que
se quer dizer é que o desenvolvimento e fortalecimento da agricultura
familiar deve ter como ponto de partida uma massa crítica de unidades
familiares concentradas geograficamente.
Referências
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Resumo
O trabalho discute as razões pelas quais se considera ainda necessário no
Brasil a implementação de políticas agrícolas e agrárias voltadas para pequenos
produtores familiares. São criticadas as visões predominantes, comuns tanto à esquerda
quanto à direita, baseadas em falsas analogias com o caso dos países desenvolvidos,
as quais consideram que não há mais espaço no país para políticas do
tipo proposto. A importância da produção familiar é enfatizada também através
de uma breve apresentação dos dados do censo agrícola do IBGE. Finalmente, na
seção conclusiva do trabalho são apresentadas algumas propostas de desenvolvimento
rural sustentável baseado na produção familiar.

Palavras-chave: agricultura familiar, desenvolvimento sustentável, equidade.

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