em homenagem à Professora Ana Clara Torres Ribeiro
Muito tem sido dito e escrito sobre a influência dos megaeventos no urbanismo. De elogios delirantes às críticas mais incisivas, esta nova face da urbanização pós-moderna tem revelado, no mínimo, que há disputa sobre aquilo que se entende como sendo cidade. Nopost anterior que escrevi neste blog debati o caráter privatizante destes eventos, mais especificamente de um evento nômade, mas constante, que aconteceu este ano e que se repetirá em 2013 no Rio de Janeiro depois de passar ano que vem por Lisboa: o Rock in Rio.
Retorno a este tema, porém, com outra cena urbana na cidade do Rio de Janeiro que se repete há anos mas, em 2011, deu mais um passo na direção tradicional e conservadora da produção do espaço brasileiro: a Lagoa Rodrigo de Freitas no Natal.
Não divagarei aqui sobre o significado da árvore de Natal que está lá montada com seus presentes e o que isso representa em relação ao consumo, deixo este debate para os defensores do espírito natalino; a questão central deste post é compreender como aquele espaço se constitui, hoje, em uma forma de reprodução do espaço que tende à privatização em seu nível mais extremo: a privatização simbólica.
Esta privatização simbólica é um nível avançado e complexo de alteração da paisagem, pois ela tende a naturalizar sua reprodução ao possibilitar sua expansão para outras áreas de modo bastante sutil que se ancora e se legitima na experiência original que converteu o símbolo em transmissão de poder “ignorado como arbitrário” como nos lembrou Bourdieu. O que ocorre na Lagoa pode ser transmitido de diversas formas sem que se perceba claramente esta transmissão.
A paisagem em questão está se transformando em mais um representante deste urbanismo de eventos que cria a ilusão debatida anteriormente da possibilidade de produção de um espaço público produzido pelo capital. Este fenômeno pode ser considerado como uma das formas de reprodução do espaço cordial que, dentre outras características, pode ser definido como um espaço produzido onde e quando houver a convivência de discursos inconciliáveis que não se evidenciem como tal em forma de conflito. Neste caso, é a suposta homogeneização do público e privado que aparece de forma harmônica recheado de espírito natalino.
Esta privatização simbólica ocorre justamente porque a árvore de Natal é hoje um símbolo apropriado por um dos maiores bancos do país que consegue conciliar seu logotipo ao tradicional vermelho de dezembro e ao mesmo tempo impor sua imagem a uma das paisagens mais conhecidas e admiradas da cidade do Rio de Janeiro. No mês de dezembro, a Lagoa Rodrigo de Freitas não é pública, mas bancária.
Para compor e reforçar esta paisagem financeira foram instalados diversos bicicletários em muitos pontos da cidade, dentre eles a orla da Lagoa que deve ser um dos melhores lugares para se pedalar do mundo. Seria muito estranho de minha parte, como um urbanista defensor de novos modos de deslocamento, criticar aqui a colocação destas bicicletas. No entanto, da mesma maneira que a árvore, o problema não se encontra em sua materialidade, mas sim no seu significado: estas bicicletas que se travestem de política pública de transporte são, da mesma forma, apropriadas por mais um banco, disseminando simbolicamente a falsa idéia de que o capital privado pode se conciliar com o uso público do espaço. O próprio clima de competição publicitária que se estabelece no local já é uma prova de que estes microeventos estão privatizando a paisagem que possuía um forte potencial de se tornar um espaço público excelente para a cidade. Obviamente que a Lagoa, assim como diversos outros espaços brasileiros raramente foram públicos por excelência já que esta categoria é praticamente ausente de nossa história urbana, o que ocorre agora é mais uma alteração deste processo que cada vez mais se reforça em nossa sociedade. O caso da privatização do Estádio de Remo da Lagoa também é outra evidência deste reforço da tradição privatizante brasileira, desta vez menos inovador por se tratar de apropriação do espaço sem maiores novidades sutis de simbolismo.
Esta percepção de que nosso espaço urbano está cada vez mais ausente de espaços públicos que possam ser assim chamados é algo que não deve nos assustar; não se trata de fenômeno recente e não devemos cair na ingenuidade de acreditar que antigamente era melhor, que nossos espaços eram mais democráticos no passado e o uso público do solo já foi, um dia, realidade no Brasil. Nunca foi regra por aqui. A produção deste espaço cordial nunca privilegiou seu uso público e sua reprodução continua se dando de forma similar, sempre sutil e brutal ao mesmo tempo. Não significa, no entanto, que deverá ser assim eternamente, que estamos fadados à privatização fragmentária, silenciosa e que nega o caráter urbano do conflito em nossas cidades. Mas, para reverter este processo é necessário, antes de mais nada, aprender este espaço como ele é, retirar as ilusões a respeito de sua conformação e criticá-lo a partir do que ele nos apresenta para que saibamos, enfim, identificar os problemas adequados à nossa espacialidade e construirmos ferramentas, discursos e ações que partam dessa nossa formação periférica para transformá-la.
Postado por Cláudio Rezende Ribeiro
Este post seria, inicialmente, uma forma de comemorar a Menção de trabalho de nosso grupo no Prêmio Capes de Tese de 2010. Trata-se de minha tese: “Ouro Preto, ou a produção do espaço cordial” que foi orientada pela professora Rosângela Lunardelli Cavallazzi: lá trabalhamos o conceito do espaço cordial utilizado aqui neste post.
No entanto, houve na semana passada uma perda irreparável para a crítica urbana brasileira: a professora Ana Clara Torres Ribeiro. Assim, preferi homenageá-la mantendo o espírito combativo que ela sempre nos ensinou. Além de todo carinho e troca intelectual que ela manteve com diversos membros de nosso LADU, ela foi fundamental na construção da referida tese premiada, sempre me ajudando a compreender a lógica da cordialidade e contribuindo em diversos momentos para sua concretização, inclusive realizando uma das mais inquietantes críticas que recebi durante minha banca de defesa (crítica esta ainda por ser respondida e que me alimenta bastante em meus estudos ainda hoje).
A professora Ana Clara sempre nos lembrava que não devemos nos espantar com nossa realidade social; antes disso, devemos compreendê-la e, para tal, sempre nos apresentava os pensadores que nos fazem entender a brutalidade e beleza da sociedade brasileira de modo a nos alertar para a importância de reconhecer o que ocorre à nossa volta, para aprendermos a combater as desigualdades de forma mais eficaz. No entanto, não foi nos revelando estes autores e suas teorias que ela mais nos ensinou, mas com sua própria ação que sempre nos deu a certeza de que é possível produzir uma relação social onde a delicadeza não é incompatível com o rigor e com a ação combativa.
do site direito e urbanismo - LADU – Laboratório de Direito e Urbanismo do PROURB-FAU-UFRJ
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